Reclusos em tempos de pandemia: o que diz a Lei

Ao referir-se aos crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, o legislador esqueceu-se que alguns dos delitos que daí constavam passaram a estar fora do Código Penal.

Foi publicada esta sexta-feira em Diário da República a Lei n.º 9/2020, que aprova um «regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19». Vejamos os seus traços fundamentais.

  • Não estão abrangidos os crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das respectivas funções»;
  • Homicídio simples, qualificado e privilegiado;
  • Violência doméstica e maus tratos;
  • Ameaça, coacção, perseguição, casamento forçado, intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, sequestro, escravidão, tráfico de pessoas, rapto e tomada de reféns;
  • Crimes contra a liberdade e autodeterminação sexuais, cometidos contra maiores ou menores;
  • Algumas hipóteses mais graves do crime de roubo e de violência depois da subtracção;
  • Discriminação e incitamento ao ódio e à violência, tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos (simples e graves) e omissão de denúncia;
  • Crimes dolosos de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, energia nuclear e incêndio florestal;
  • Associação criminosa;
  • Branqueamento;
  • Recebimento indevido de vantagem, corrupção activa e/ou passiva;
  • Ofensa à integridade física grave e alguns casos da sua modalidade qualificada, o que por esta via permite abranger as hipóteses de mutilação genital feminina que não foi expressamente consignada, bem como quando exista agravação pelo resultado morte ou ofensa à integridade física grave, o que também abrange as hipóteses mais censuráveis da ofensa à integridade física simples;
  • «Crime enquanto membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas ou funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das suas funções, envolvendo violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena»;
  • «Crime enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas»;
  • Na Lei da Droga, os delitos de tráfico e outras actividades ilícitas, precursores (fabrico de substâncias para o tráfico) e associações criminosas.

Uma desatenção do legislador, mas que também não está abrangido pelas medidas de graça: ao referir-se aos crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, esqueceu-se que alguns dos delitos que daí constavam, com a Lei n.º 31/2004, de 22/7, passaram a estar fora do Código Penal (CP).

Todavia, seria incompreensível que se interpretasse a norma como podendo ser objecto de medidas de clemência todos  os crimes aí previstos, como o incitamento à guerra, aliciamento de forças armadas, recrutamento de mercenários, genocídio, delitos contra a humanidade e de guerra contra civis e destruição de monumentos. Também não está excluído o terrorismo e delitos conexos, pela linear razão de que não temos ainda condenados por tais crimes, embora devessem estar indicados por razões de prevenção geral.

Os mecanismos através dos quais se procurará garantir a existência de mais espaço nas prisões, em virtude da Covid-19 são o perdão parcial de penas de prisão, regime especial de indulto das penas; regime extraordinário de licença de saída administrativa de reclusos condenados; antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional.

No tocante ao primeiro, abrangem-se as sanções até 2 anos (inclusive) ou o que faltar cumprir da pena pelo mesmo período, mas sempre que o recluso já tenha cumprido metade da mesma à data da entrada em vigor da lei (11/4/2020), abrangendo também os casos de incumprimento da multa principal convertida em prisão subsidiária, bem como de multa de substituição (art. 45.º do CP).

Se o condenado estiver a cumprir várias penas, o perdão só funciona uma vez e incide sobre o somatório de todas, mas só se tal corresponder a até no máximo 2 anos (ex. penas sucessivas de 3, 4 e 5 anos – somatório de 12 anos –: só há libertação se já tiver cumprido, no mínimo, 10 anos). No caso de penas de substituição (pena suspensa, prestação de trabalho a favor da comunidade, etc.), só há perdão se houver revogação das mesmas pelo seu incumprimento. A competência para aplicar qualquer modalidade de perdão é sempre do juízo de execução das penas territorialmente competente e não do tribunal da condenação, prevendo-se que o Conselho Superior da Magistratura afecte mais juízes para o efeito, como no PÚBLICO defendemos, dado serem apenas 20 no país.

Quanto ao indulto excepcional, parcial ou total, da competência exclusiva do PR, sob proposta da Ministra da Justiça, abrange penas de prisão aplicadas a reclusos que tenham 65 ou mais anos e sejam portadores de doença, física ou psíquica, ou de um grau de autonomia incompatível com a normal permanência em meio prisional, no contexto da pandemia. O processo é organizado pelo Director-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), em articulação com o director da prisão e não abrange os crimes acima identificados. A iniciativa pode partir dos reclusos ou do director do estabelecimento prisional.

Em relação à licença de saída administrativa extraordinária, ela é, nos termos do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEP), da competência do DGRSP, pelo período de 45 dias, e exige, para além dos requisitos gerais já previstos no CEP, o gozo prévio de pelo menos uma licença de saída jurisdicional ao recluso que cumpre pena em regime aberto ou o gozo prévio de duas saídas jurisdicionais ao recluso que cumpre pena em regime comum e a inexistência de qualquer situação de evasão, ausência ilegítima ou revogação da liberdade condicional nos 12 meses antecedentes.

Fica o recluso obrigado, sob pena de revogação e regresso à prisão, a permanecer na habitação e aceitar a vigilância dos serviços de reinserção social e dos elementos da polícia, cumprindo as suas orientações e respondendo aos contactos periódicos que com ele vierem a estabelecer, nomeadamente por via telefónica.

A adaptação à liberdade condicional consiste, em súmula, na faculdade já existente de o recluso ir para casa com pulseira electrónica algum tempo antes de atingir o momento normal em que se equacionaria a concessão ou não da liberdade condicional. Passa agora a ser possível a partir de 18 meses (no regime geral era 1 ano) antes de o recluso atingir dois terços (se prisão inferior – ou igual: a lei não o diz, mas deve interpretar-se assim – a 6 anos) ou cinco sextos (se prisão superior a 6 anos) da pena a cumprir. O regime aplicável a metade da pena mantém-se intocado, tal como prevenido no art. 62.º do CP.

Por fim, continuam naturalmente os tribunais a poder – e dever – aplicar a prisão preventiva nos casos em que a lei o impõe, embora se preveja um especial dever de ponderação na sua manutenção, já, e não apenas aquando do reexame periódico, nas hipóteses em que o PR também deve ter em conta para a concessão do indulto (idade ou doença).

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