Quando a hiperactividade do Parlamento surge como esquizofrenia

Muitas das propostas eram para marcar terreno partidário e ideológico, eram pura propaganda.

Com o país a viver um momento inédito de estado de emergência para fazer face à pandemia de covid-19 e as pessoas prestes a passar a Páscoa em confinamento e distanciamento social, fechadas em casa, sem poderem realizar uma das celebrações mais simbólicas da cristandade, que é também já uma das festas mais assimiladas na sociedade por ateus e agnósticos, o Parlamento voltou a reunir-se na quarta-feira para uma bizarra maratona de debates e votações. Em agenda estiveram duas propostas de lei do Governo e mais uma centena de propostas apresentadas pelos partidos da oposição, à excepção do PSD, das quais 42 eram projectos de lei e o resto projectos de resolução. 

A regular actividade da Assembleia da República, ainda que agora condicionada no quórum, é de saudar e demonstra que, de facto, a democracia não ficou suspensa com a entrada em vigor do estado de emergência, como salientaram o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, António Costa. O papel de um Parlamento é essencial em qualquer sistema demo-liberal e a Assembleia da República é central no quadro constitucional dos órgãos de soberania do Estado português. É, por isso, importantíssimo que o Parlamento português se mantenha atento e actuante neste período de crise.

É também de saudar, em geral, a colaboração e a iniciativa dos partidos parlamentares para contribuírem com propostas para salvaguardar as condições de vida das pessoas e a defesa dos direitos dos trabalhadores numa crise da dimensão estratosférica, que atinge a saúde pública, a economia, a organização social, e cujos contornos exactos e consequências não é possível vislumbrar.

O Parlamento é vital, tanto mais que o Presidente da República decretou o estado de emergência a 18 de Março, o qual se renovou a 1 de Abril, dando poderes reforçados ao primeiro-ministro, António Costa. Desde então, além de ter aprovado dois decretos de execução do estado de emergência, a 19 de Março e a 2 de Abril, o Governo tem produzido vasta legislação para fazer face às necessidades de combater a paralisia da economia e a crise social. Como sublinhou, no debate de quarta-feira, o deputado do PS Tiago Barbosa Ribeiro, tinham sido aprovados, até esse momento, 137 diplomas governamentais para impedir “o colapso social”.

Alguns dos projectos apresentados pelos partidos e discutidos na quarta-feira eram positivos e colmatavam lacunas que se verificaram na legislação aprovada pelo Governo para fazer face à pandemia. Foram aprovadas pela esquerda parlamentar, entre outras, medidas como a não-interrupção dos serviços essenciais de água, electricidade e gás (propostas do PCP e do BE) e comunicações electrónicas, garantias do Estado a advogados e solicitadores e o apoio à produção cultural e profissionais do espectáculo (BE), a proibição de os bancos cobrarem comissões sobre operações em plataformas digitais (PEV) e adaptação do pagamento de propinas no ensino superior (PAN).

Assim como foram importantes os contributos dados pelo CDS e pelo PCP para melhorar a proposta de lei sobre indulto, perdão de penas e licenças precárias, apresentada pelo Governo para fazer face à contaminação pela covid-19 em ambiente prisional, e que foi aprovada pela esquerda. O outro diploma do executivo debatido nessa tarde foi o da agilização dos procedimentos administrativos nas autarquias e da permissão de acesso a empréstimos pelas câmaras para fazer face à crise, que foi aprovada por unanimidade.

Mas tinha razão o líder parlamentar do PSD, Adão Silva, ao justificar a não-intervenção do PSD na discussão parlamentar dos projectos de lei de resolução e a decisão de votarem contra todos eles: “Hoje, em pouco mais de hora e meia, a Assembleia da República vai debater uma centena de projectos de lei e resolução numa salganhada de assuntos e que a todos se promete tudo.”

Até porque muitas das propostas eram para marcar terreno partidário e ideológico, eram pura propaganda. Exemplo disso é a insistência do BE em apresentar um projecto de lei sobre requisição das “instalações, equipamentos e profissionais do sector privado” da Saúde, quando o decreto do estado de emergência dá esse poder ao Governo.

Por muito que seja essencial o funcionamento do Parlamento e uma atitude fiscalizadora e participativa dos partidos com assento parlamentar, discutir numa tarde mais de uma centena de propostas de diplomas é contraproducente. Mais, dá a ideia aos cidadãos de que os partidos parlamentares propõem tudo e mais umas botas, apenas para marcarem terreno nas guerras de protagonismo político. A sessão de quarta-feira atingiu um tal grau de esquizofrenia que apenas passou para o país a imagem de que o Parlamento — e os partidos que nele têm assento — não tem noção da realidade.

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