Quebrar estigmas nos Países Baixos

As respostas para a crise não podem ser apresentadas pelo Governo de Mark Rutte apenas como atos de boa vontade. Cabe aos líderes políticos do país serem transparentes sobre as vantagens de uma resposta decidida e coesa a nível europeu.

Os Países Baixos construíram durante anos um elevado soft power diplomático e uma forte reputação em temas como tolerância e liberdade. Lembremo-nos que os Países Baixos foram dos primeiros países a reconhecer a legitimidade do 25 de Abril. Apenas uns dias após a revolução dos cravos, Mário Soares foi recebido em Haia pelo primeiro-ministro holandês Joop den Uyl. Durante o verão quente de 1975, o partido trabalhista holandês foi um dos mais importantes financiadores do Partido Socialista português, tendo organizado ações públicas de recolha de fundos na televisão para financiar as forças democráticas portuguesas sob o lema “manter Portugal livre”. Ao nível do projeto europeu, os Países Baixos foram dos principais impulsionadores do Tratado de Maastricht, um marco no processo de integração europeia.

O novo milénio revelou um país que afinal estava mais virado para dentro e com enormes fricções internas. Em 2002 Pim Fortuyn, líder de um partido de extrema-direita, foi assassinado em plena campanha eleitoral. Mais tarde, em 2004, o cineasta Theo van Gogh foi assassinado após ter produzido um filme crítico sobre o mundo islâmico. A forte orientação europeia do país foi também subitamente posta em causa com o chumbo em referendo de 2005 do Tratado Constitucional Europeu.

A extrema-direita assumiu precisamente nestes últimos anos um lugar estruturalmente relevante no panorama político holandês, levando partidos, especialmente à direita, a ceder na sua orientação europeia. Estes desenvolvimentos criaram o contexto político doméstico para a recusa de uma resposta europeia eficaz e coesa para a crise da zona euro, tendo-se os Países Baixos tornado um dos principais aliados do ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, no Eurogrupo e uma das principais vozes para uma resposta de austeridade à crise. Por esta altura, tablóides e partidos populistas começaram a difundir estigmas sobre os países do sul da Europa para que não fosse “enviado” dinheiro para estes países.

São estes estigmas, e os desenvolvimentos políticos do início do milénio, que misturados com uma concepção de superioridade moral na gestão das contas públicas ajudam a explicar o desastre diplomático do Governo dos Países Baixos dos últimos dias. A sua actuação também é reveladora de uma insensibilidade sobre as consequências de longo prazo da posição adotada por sucessivos governos holandeses face à austeridade imposta aos seus pares do sul. As declarações de “copos e mulheres” de Jeroen Dijsselbloem não só reforçaram estigmas já existentes, como também causaram severos danos para a imagem do país, os quais aparentemente não foram devidamente avaliados pelos responsáveis políticos de Haia. 

Talvez seja por isso necessário analisar a situação mais a fundo e compreender o significado do projeto europeu para os líderes políticos de Portugal e dos Países Baixos. Em Portugal, a UE tem sido apresentada, como um símbolo de desenvolvimento. Por sua vez, nos Países Baixos, a defesa do projeto europeu tem-se baseado nas vantagens em termos de rendimento económico e no número de empregos gerados. Na verdade, a livre circulação de pessoas e bens tem sido essencial para as suas exportações, para a atração de empresas por motivos fiscais e para a captação de recursos humanos qualificados e não qualificados. É este conceito mercantil do projeto europeu, entretanto entranhado na sociedade holandesa, que dificulta que os Países Baixos assumam uma posição de liderança construtiva perante situações que requerem uma ação europeia comum.

A posição do ministro das Finanças holandês foi tudo menos consensual a nível nacional. Ao fim de alguns dias o Governador do Banco Central dos Países Baixos (DNB) e um conjunto de 60 economistas do país apresentaram a sua divergência. Nout Wellink, um antigo Governador do DNB foi mais explícito: “deixaremos de ser ricos no norte da Europa se o sul da Europa cair”. Dois dos quatro partidos que formam a coligação dos Países Baixos também mostraram o seu descontentamento, tendo o primeiro-ministro Mark Rutte apresentada a disponibilidade de contribuir para um fundo europeu de emergência média, sem deixar de qualificar esta intenção como um “presente”.

Infelizmente a reputação dos Países Baixos estará afetada por vários anos. O país tolerante que promoveu na sua televisão pública ações de angariação de fundos para apoiar o processo de transição democrática em Portugal, é governado no presente por um setor que tem objeções morais a um esforço europeu incondicional dirigido às consequências da maior crise sanitária das nossas vidas. Mas os Países Baixos são muito mais do que as posições dos partidos que se encontram no Governo. Também ficou evidente que uma resposta coesa a nível europeu conta com aliados influentes na sociedade civil e no sistema político do país. No entanto, ainda é preciso ultrapassar no seio da sociedade holandesa os estigmas acumulados desde a crise do euro. Em vez de apresentar as respostas à crise como um ato de boa vontade, o atual Governo dos Países Baixos deveria sublinhar as vantagens, também para o próprio país, de o conjunto dos países da União Europeia terem instituições e orçamentos desenhados para responder de forma ágil a crises futuras e aos objetivos comuns de crescimento e de reforço do peso geopolítico da União Europeia. A própria recuperação económica pós-covid só será transformadora no longo prazo se for capaz de responder a desafios como a descarbonização ou a digitalização, os quais não se resolvem dentro das fronteiras individuais dos países da União Europeia. A reação da sociedade civil holandesa dos últimos dias poderá indicar uma maior receptividade do que no passado a uma resposta europeia forte e coesa. Mesmo neste contexto, e com eleições em 2021, é difícil de antever que nível de compromisso Mark Rutte estará disposto a celebrar a nível europeu. Ou melhor, que estigmas ajudará a quebrar.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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