O tempo das alternativas: criar uma economia do cuidado

Vivemos há muito em sociedades de serviços. Mas que serviços queremos? É aqui que talvez resida a mais profunda reconversão das nossas economias.

Já entendemos o que era tão difícil de entender: é possível parar, mesmo que por más razões; é possível e necessário recuperar o espaço onde vivemos e onde nos organizamos e que julgávamos diluído nos fluxos internacionais; o cuidado, o cuidado com as pessoas, tornou-se na questão central; é na ação coletiva e na esfera pública que se travam as lutas decisivas. As vulnerabilidades, que víamos como o mau resultado de políticas e quadros institucionais errados, são isso e são muito mais – tornaram-se vulnerabilidades radicais.

Todas as crises comportam alternativas. Mas tem de se aceitar que em certos momentos, como na última década, a análise da crise se sobrepôs pesadamente à formulação dessas alternativas. A crise careceu de interpretação e foi nela que começou a formulação de uma visão. Daí, porventura, a habitual minúcia analítica e a insistência argumentativa sobre o que se estava a passar.

Não são esses os tempos de agora. Agora é tempo para acrescentar a formulação de alternativas e fazer aí o debate. Compreendemos já que o tempo acelerado e vertiginoso que tudo mudava vai dar lugar a circunstâncias longas e poderosas. Temos de saber quais são as bases sobre as quais os dias futuros precisam de assentar. Temos de criar uma economia que comece na organização do sistema produtivo, prossiga na capacidade permanente de criar valor, mesmo em tempos de paragem, e tenha no centro o princípio do cuidado (porventura na dupla aceção de prudência e de tratar da vida).

Primeira peça de uma alternativa: uma economia da produção orientada para a comunidade. Cuidar das pessoas, cuidar do que elas precisam na sua proximidade, cuidar dos meios de produção e das formas de organização que lhes proporcionam os bens e os serviços que se tornam essenciais. Falo dos sistemas produtivos. A agricultura é essencial. O seu esquecimento, assim como a redução do setor industrial, a diluição em “cadeias de valor internacionais”, a exposição desmedida ao turismo não foram apenas vulnerabilidades insensatas – elas retiraram recursos e capacidades à produção próxima de bens e serviços, alimentaram a vertigem das transações que delapidam o ambiente e, sabemo-lo agora, as comunidades.

Exemplifico: em Portugal, a indústria representa hoje apenas 14% do valor que criamos. A agricultura e as pescas 2,4%. O turismo e as viagens, cuja promoção foi tão insensata, são 18% do PIB. Em 2019, importámos em bens mais de 80 mil milhões (equivale a quase 40% do PIB). Há quem, considerando indicadores como estes, diga que Portugal é a economia europeia mais vulnerável. Regressemos, pois, à produção e definamos com consciência o sistema produtivo de que precisamos. Reindustrializemos (em sentido contemporâneo, claro) e interroguemo-nos sobre o que não podemos deixar de produzir. Não se veja nisto isolacionismo ou protecionismo. É assim que os demais têm também que se organizar e é nessa base que a cooperação, o benchmarking e as interdependências saudáveis se podem promover. Não no estreitamento e nos desequilíbrios que desapossam. Não geremos as dependências que fragilizam.

Segunda peça de uma alternativa: uma economia de serviços orientada para o cuidado das pessoas e para a saúde. Vivemos há muito em sociedades de serviços. Mas que serviços queremos? É aqui que talvez resida a mais profunda reconversão das nossas economias. É a partir daqui que se reorganiza agricultura e indústria. Uma reconversão para o que é próximo e para circunstâncias em que se pode intensificar dramaticamente a necessidade de acorrer a toda a comunidade. Há muito que a saúde e os cuidados pessoais foram aumentando o seu peso no emprego total. Há muito que se discute o envelhecimento e a economia que isso deve convocar. Haverá muita realocação de recursos e isso terá de ser guiado pela finalidade do cuidado e pelo objetivo de evitar dependências perigosas. É de autossuficiência que se trata, assim como de desglobalização.

Terceira peça de uma alternativa: a comunidade e a ação pública no centro da organização coletiva. Está negada de forma evidente a afirmação sempre falsa de que o mundo se reduz a conjuntos de indivíduos. O primado da sociedade é claro e emociona-nos. E está também demonstrado que a sociedade se governa por legitimidade e ação coletiva, assente no bem geral e na gestão pública. O Estado que reencontramos não é o que é reclamado pelos desesperados pela perda dos privilégios, é o que produz respostas para manter a sociedade. A economia do cuidado, que começa na organização das capacidades de produzir e criar valor e culmina no conforto da salvação de vidas, é aquela em que o Estado está no centro de uma ordem relacional que não é estatista, mas é pública e coletiva. O Estado regula e consagra o que configura a sociedade, é certo. Mas também tem de ser parte da produção e da vida material em que a sociedade assente: produz, se for necessário, antecipa as capacidades de que vamos precisar, articula o que já existe em vista das finalidades tornadas urgentes.

Quarta peça de uma alternativa: encarar a possibilidade de uma fratura da União Europeia. Não estamos em tempos de “saídas”. Estamos em tempos de encarar fraturas reais. As antigas já foram expostas, eram entre credores e devedores, os protegidos nos poderes da finança e os submetidos a esse poder. Essa foi a Europa que nos deprimiu. Agora há uma Europa que nos ignora. A Europa ignorada é tão vasta e tão capaz como a outra. Pode organizar-se por semelhança e auto estruturar-se. Não se trata de contrapor desejos – o desejo maior era uma Europa solidária, de paz e de ação conjunta. Trata-se de encarar o lado duro da vida, mesmo que isso gere novidades no nosso espírito. Dou valor às interdependências internacionais e ao plano supraestadual. Mas não ao que se concentra na constrição e na norma deprimente. Há um novo espaço europeu a construir. O de agora, não o do passado. 

Quinta peça de uma alternativa: planeamento e governo. Para tudo isto, para envolver serviços, agricultura e indústria e para que as finalidades sejam claras, o termo certo é planeamento e ação pública. Uma economia sujeita a governo em nome do bem comum e a uma finalidade clara, distinta da que nos trouxe até aqui: a finalidade da vida, da comunidade e do cuidado.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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