Aviões, não, por favor

A luta contra a pandemia, para já a correr bem, numa região que é um barril de pólvora. Porque estará Lisboa a dificultar o caminho aos Açores, um arquipélago gregário, com baixos índices de desenvolvimento e três hospitais para nove ilhas?

Da última vez que a Humanidade se pôs perante desafio comparável, o Mal foi combatido por homens como Churchill, Roosevelt ou De Gaulle. No ano em que o planeta é varrido pela covid-19, alguns dos mais influentes países do planeta são comandados por personagens como Trump, Bolsonaro, Johnson, Modi, Obrador, até (a meias) Iglesias. Os resultados estão à vista e reforçam as razões por que devemos celebrar Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa.

Nem Belém nem São Bento têm feito tudo bem. Mas souberam integrar os sobressaltos e fracassos dos outros; souberam mobilizar a população para o combate à pandemia; e têm sabido manter, ao mesmo tempo, a tensão necessária à eficácia dos cuidados e a atenção imperativa às novas soluções de mitigação.

Apesar disso, continuam a submeter as regiões autónomas a uma pressão desnecessária, e a cujos perigos só os esforços hercúleos dos governos regionais – e alguma sorte – têm conseguido obviar.

Nos Açores, onde vivo, o fim-de-semana foi de alívio: sábado não houve novos casos, domingo apenas um, segunda-feira nenhum de novo. Mas noutros dias têm sido comunicados cinco, nove, mesmo quinze infecções. O número de internados em cuidados intensivos cresceu depressa. Domingo estavam identificadas sete cadeias de transmissão. E todos os seis concelhos de São Miguel encontravam-se já dentro de cordões sanitários.

Porque, num território assim, a tragédia pode escalar num ápice, ademais perante um cenário global em que a doença persiste em dramática expansão. E, enquanto continuarem a aterrar aqui aviões com passageiros não essenciais, o risco de disseminação em massa mantém-se. Mesmo que não se repitam casos como os do passageiro que, no domingo, desembarcou em Ponta Delgada doente, diagnosticado com covid-19 e evadido da hospitalização domiciliária no continente.

Para mais, o suave impacte dos primeiros dias da pandemia catalisou desleixos vários. Alguma classe média ainda pede mais voos, de modo a poder ir de férias (pergunto-me para onde), para exasperação expressa do Governo. E de São Miguel chegam cada vez mais relatos sobre como as pessoas furam os cordões – até escondidas em bagageiras de automóveis autorizados a circular.

Não por acaso. Muitas famílias, aqui, sobrevivem da economia informal. E, entretanto, o desenvolvimento humano continua abaixo da média. Regularmente ou em permanência, os Açores têm liderado as estatísticas nacionais de analfabetismo, insucesso e abandono escolar; de violência doméstica, abuso sexual e gravidez precoce; de alcoolismo, obesidade na adolescência e diabetes; de mortalidade infantil, suicídio jovem e crimes contra as pessoas; de desemprego, dependência do RSI e pobreza persistente.

É ir ao INE ou à Pordata. Os Açores são um paraíso para a classe média. Um rico vive tão bem cá como noutro lugar qualquer. Mas os desafios que aqui se colocam aos pobres não têm paralelo no país.

Por isso tenho sido um opositor da ideia, reclamada amiúde, de reforço da autonomia. Cheguei não só a defender o cargo do Representante da República, mas a pedir o regresso à extinta figura do Ministro da República, com margem para impor a Lisboa o escrutínio das ilhas, tarefa de que – por falta de massa crítica, por subsidiodependência, por desinteresse na coisa pública – não estamos a dar conta.

Pois qual não é o meu espanto quando, da primeira vez em muito tempo que Belém atribui aos seus Representantes uma tarefa relevante, é o da manutenção das carreiras aéreas entre o continente e os arquipélagos, apesar da covid-19 e em nome do princípio constitucional da continuidade territorial. Isto quando o Representante nos Açores há anos assiste impávido à negligenciação do não menos constitucional imperativo da coesão.

Como sempre, nem os constitucionalistas se entendem quanto ao que está em causa. A mim, custa-me perceber pelo menos que, ficando assegurados voos para cargas, passageiros com razões de força maior e operações de emergência, a continuidade territorial esteja mais em causa sem as carreiras regulares para as ilhas do que com cordões sanitários em Ovar ou em São Miguel. Mas, sobretudo, pasmo com a impotência em que Lisboa deixou o executivo regional.

No meio de constrangimentos formais e políticos (as diferentes tutelas aeroportuárias, a coincidência com o partido no poder no continente), Vasco Cordeiro evitou a severidade da Madeira impondo a paralisação da SATA e uma quarentena em hotel aos recém-chegados pela TAP. Mas, quanto a esta, não pode fazer senão rezar.

Foi o que esteve a fazer nos últimos dias: a rezar. A torcer para que os três voos semanais que a TAP pode agora levar às ilhas tornassem a ser, por iniciativa da companhia, reduzidos a dois. E para que (por iniciativa dela também) continuassem ambos agendados para dias de fim-de-semana, caso em que, na Páscoa, seriam anulados pelas restrições nacionais.

Portanto: autoridades políticas e de saúde torcendo, rezando para que uma companhia aérea, na sua discricionariedade, lhes poupe a população. Seria cómico se não fosse trágico.

Em terceiro lugar, porque as cadeias de transmissão identificadas resultaram todas de perambulações turísticas. Em segundo, porque o encerramento de aeroportos já provou ser eficaz na contenção do vírus, como aconteceu em São Jorge (cujo aeródromo é gerido pela SATA). E, em primeiro, porque, em ilhas como estas, um caso nunca é um caso.

Gregária, uma grossa fatia da população dos Açores vive em bairros sociais atravancados e nem sempre com as melhores condições de salubridade. Entretanto, há três hospitais para nove ilhas. As evacuações fazem-se com helicópteros, em número limitado. A difícil meteorologia chega a dificultar resgates. E, no geral, bastos procedimentos clínicos persistem, para os locais, em ter de ser feitos em Lisboa, Porto ou Coimbra.

Um bom cenário para uma catástrofe.

E não será surpreendente que os números dos últimos dias aumentem o risco dela, por via de um triunfalismo de que já antes vimos sinais. Nem, já agora, que os missionários da açorianite aguda – três nostálgicos da FLA e meia dúzia de pensadores a quem dá jeito um mercadinho privativo – façam recrudescer a velha exigência de partidos regionais em Portugal, à procura de anónimos entediados e urgentes de pertencer a alguma equipa.

O populismo espreita em todo o lado. Há dias, falava-se de cantar o hino dos Açores à janela. Felizmente, ninguém sabia a letra: os açorianos são em primeiro lugar portugueses. Mas, entretanto, já há quem distribua, nas redes sociais, fichas de inscrição em movimentos nacionalistas açorianos (sic) inspirados nos dos anos 70.

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