Cem dias que abalaram o mundo

Dizia Marx que a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. É a esse triste espetáculo que assistimos na Europa neste momento fundamental.

Os primeiros cem dias de 2020 não deixaram ninguém indiferente. À escala planetária e individual, o vírus tornou-se central nas nossas vidas, anseios e preocupações, e a aborrecida normalidade parece-nos agora um desejo exótico. Uns cem dias que abalaram o mundo, diria John Reed.

Sabíamos que o dia chegaria, avisos não faltaram. O que faltou foi o financiamento e a preparação. A prevenção não aquece corações, não ganha eleições nem conquista acionistas. Isso ajuda a explicar as escassas reservas de material e a falta de investigação em vacinas para os coronavírus, conhecidos desde os anos 60 do século passado. A outra parte da explicação está na divisão mundial da produção, que entregou à Ásia – China em particular – as competências e a capacidade para produzir coisas tão simples como máscaras ou luvas.

Os serviços públicos de saúde mostram-se fundamentais, com todos os seus profissionais. Quando os privados encerram estabelecimentos de saúde ou deixam à porta quem não tem seguro ou dinheiro, são os SNS que não viram as costas às dificuldades. E, mesmo depois toda a austeridade, depois de todas as privações e privatizações neoliberais, são a espinha dorsal que nos salva da pandemia.

É certo que muitos profissionais foram carne para canhão no tsnunami que invadiu hospitais. Quando o poder político não agiu com a velocidade necessária, atrasando a adoção de medidas públicas de afastamento social, correu-se atrás do prejuízo. O pesadelo é aquela curva “exponencial” que muita gente desconhecia e agora parece tão óbvia.

O recolhimento por vezes parece reclusão, mas é fundamental para conseguirmos fintar a inevitabilidade da curva. Portugal parece ter aprendido bem com os erros de outros. A saúde pública – uma área acantonada no SNS, permanentemente vista como um custo, exangue de profissionais e recursos – tem sido David contra Golias, fazendo-se forte contra o vírus e provando que o conseguimos vencer, desde que nenhum de nós falte às suas obrigações. Ainda sem data, o dia seguinte ao isolamento virá com máscaras e o gel desinfetante tornar-se-á amigo inseparável, consigamos nós produzir ambos com a abundância necessária.

A pandemia trouxe o pandemónio à economia, tempestade fulminante. Se pedimos às pessoas para ficarem em casa pela saúde de todos nós, temos de garantir que têm rendimentos para isso e que a economia não lhes virará as costas depois. É isso que falha em Portugal, com uma defesa muito incompleta do emprego e apoios envergonhados às empresas, em particular às PME. Temos de ir mais longe, como escrevi anteriormente.

As fragilidades ficaram novamente expostas, com a enorme dívida pública à cabeça e uma economia nacional que enganou com o fôlego que ganhou no turismo, mas agora se esvaziará. Comprova-se que adiar problemas não os resolve, apenas os carrega para momentos em que temos mais dificuldades para lidar com eles. Está nas nossas mãos aprender com o bom que fizemos, o aumento do Salário Mínimo Nacional e a eliminação dos cortes salariais e das pensões foram fundamentais para a recuperação do consumo privado, corrigindo o desastre económico e social da política da austeridade. Contudo, a resposta fundamental é a europeia.

Dizia Marx que a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. É a esse triste espetáculo que assistimos na Europa neste momento fundamental. A destruição brutal que a austeridade da troika trouxe a Portugal e a estagnação europeia desde esse momento são a tragédia inicial. A ópera bufa das reuniões inconclusivas do Eurogrupo ou do Conselho, o “repugnante” ministro de turno nas finanças holandesas, são a farsa atual.

A Holanda vive de braços abertos ao capital dos países do sul, roubando receitas fiscais a outros Estados. O dumping fiscal é o púlpito dos discursos moralistas sobre a frugalidade do norte e os preguiçosos do sul, cortina de fumo para uma política de desigualdades patrocinada pela Alemanha. O duelo entre Costa e Centeno será falado em alemão.

O financiamento monetário dos Estados pelo BCE é a única saída para os povos, sem condições ou restrições, mas esse caminho é o sentido proibido no Conselho, leva um rotundo “nein”. Será que os cem dias abalaram mesmo o mundo?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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