Covid-19: a infecção por SARS-CoV-2 é capaz de gerar imunidade?

A questão que se coloca neste momento é – será que a covid-19 é capaz de gerar uma imunidade adquirida? É importante ressalvar que é muito prematuro tirar conclusões sólidas.

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LUSA/FEHIM DEMIR

Um dos temas que mais tem gerado curiosidade em relação à covid-19 está relacionado com a possibilidade desta doença criar imunidade adquirida, isto é, em tentar perceber se uma pessoa infectada com o vírus SARS-CoV-2 se torna imune à doença.

Antes de tentar deslindar os estudos feitos até então neste sentido, é importante clarificar alguns conceitos básicos de imunologia. Comecemos então pelo sistema imunitário, que pode ser definido como um sistema de estruturas e de processos biológicos responsáveis por proteger o organismo contra a acção de um agente invasor (também conhecido por agente patogénico). Este sistema oferece, fundamentalmente, dois tipos de resposta imunitária – a imunidade inata, que actua de uma forma muito rápida e generalizada para diferentes agentes patogénicos, não gerando, portanto, memória imunitária; e a imunidade adquirida, capaz de atacar em específico um agente patogénico, oferecendo uma resposta mais direccionada e eficiente. Apenas este último tipo é capaz de gerar memória imune, que nos vai proteger contra uma segunda infecção.

Vejamos então, o que acontece durante o processo de infecção — quando um organismo é atacado por um agente patogénico, o sistema imunitário entra em acção e milhares de células do sistema imune são direccionadas para o local da infecção, de modo a controlar a sua proliferação. Assim que o agente patogénico é eliminado e que a infecção está finalmente controlada, o sistema imunológico dá por terminada a sua acção. Contudo, durante a intervenção do sistema imunitário foram produzidas umas células específicas, capazes de permanecer no organismo por longos períodos de tempo, chamadas células de memória. São estas células que são responsáveis por desenvolver aquilo a que se chama de imunidade adquirida ou memória imune e que nos protege contra uma segunda infecção. Estas células dividem-se em dois grandes tipos – os linfócitos B de memória e os linfócitos T de memória.

Se formos infectados uma segunda vez pelo mesmo agente patogénico, as células de memória vão reconhecer imediatamente o invasor e vão actuar de uma forma muito mais rápida e eficaz. O agente patogénico vai ser eliminado pelo sistema imunitário antes sequer de provocar doença ou de gerar sintomas. Diz-se, portanto, que estamos imunes àquela doença em específico. Contudo, nem todas as doenças infecciosas geram imunidade e nem sempre essa imunidade dura para toda a vida.

Posto isto, a questão preponderante que se coloca neste momento é – será que a covid-19 é capaz de gerar uma imunidade adquirida? E, se sim, durante quanto tempo? Em termos, científicos isto equivale a perguntar a infecção causada por SARS-CoV-2 é capaz de gerar linfócitos B e T de memória em quantidade suficiente para nos proteger de uma segunda infecção?

Ora, o ponto de partida para esta questão é verificar o que acontece com o SARS-CoV (que originou o surto epidémico de 2002), já que este é o coronavírus mais similar ao actual SARS-CoV-2 (79% homologia) e existem muitos mais estudos sobre ele. Realmente, os estudos demonstram que pacientes infectados com SARS-CoV possuem células de memória, o que significa que esta doença gera imunidade adquirida. Tal sugere que, por sua vez, a infecção por SARS-CoV-2 poderá também gerar memória imune.

Estudos imunológicos realizados em pacientes com covid-19 demonstram que a infecção por SARS-CoV-2 está associada a um perfil imunológico normal, capaz de produzir anticorpos e, portanto, criar imunidade adquirida. Um estudo realizado com macacos mostrou que os animais que foram reinfectados pela segunda vez com SARS-CoV-2, 18 dias após a primeira infecção, produziram anticorpos contra o vírus e, portanto, não desenvolveram novamente doença. Tais resultados sugerem, uma vez mais, a existência de uma memória imunitária.

Por outro lado, já foram reportados alguns casos de reinfecção, o que indica que, para algumas pessoas, ainda que em situações muito específicas, esta imunidade não está a ser criada, ou pelo menos não é suficiente. Por outras palavras, isto significa que estes pacientes não conseguem produzir células de memória em quantidade suficiente para ficarem protegidos. A capacidade de criar imunidade depende principalmente da condição inicial do paciente. Para melhor compreendermos este efeito, é importante dividir o decurso da doença em dois estágios, que vão definir a criação ou não da memória imunitária.

  1. Numa primeira fase da doença, em que o paciente infectado apresenta uma sintomatologia leve, se o sistema imunitário conseguir controlar a infecção, então haverá produção de células de memória que levarão à criação de uma imunidade adquirida e consequente protecção numa segunda infecção;
  2. Se o paciente infectado não conseguir controlar a infecção e se a doença se desenvolver para quadros clínicos mais graves, o paciente não conseguirá produzir células de memória em quantidade suficientes para criar memória imunitária. Tal acontece em indivíduos que já estão numa situação fragilizada, que compromete o normal desempenho do sistema imunitário, como pacientes imunodeprimidos, pessoas de faixa etária avançada ou doentes que apresentem outras comorbidades.

Ou seja, isto significa que a doença covid-19 cria sim memória imunitária, mas nem sempre essa memória é suficiente para impedir uma reinfecção sem sintomas — pacientes assintomáticos ou que desenvolveram sintomas leves serão capazes de gerar imunidade adquirida, enquanto pacientes mais fragilizados, que geralmente são aqueles que desenvolvem doença severa, poderão não estar completamente protegidos. Em relação à duração desta protecção imunitária, não há, neste momento, dados suficientemente sólidos que nos permitam auferir conclusões nesse sentido.

Ainda assim, e para finalizar, é também importante ressalvar que é muito prematuro tirar conclusões sólidas sobre a criação de imunidade adquirida, por vários motivos – em primeiro lugar porque a doença é relativamente recente e portanto a melhor amostragem que temos são pacientes que recuperaram da doença, no máximo, há dois meses; em segundo lugar porque os estudos realizados até então têm uma amostragem relativamente pequena, de 30 a 50 infectados, o que é um número muito baixo; em terceiro lugar porque a maior parte dos pacientes usados para estes estudos são grupos de populações chinesas, o que limita a análise em termos de variabilidade genética; e em quarto e último lugar, grande parte das pessoas que foram reinfectadas não realizaram um exame para certificar que estavam recuperadas entre a primeira e a segunda infecção, o que pode significar que essas pessoas não foram reinfectadas, mas sim que talvez não tivessem chegado sequer a recuperar totalmente da primeira infecção. Esta última possibilidade é sustentada pelo facto de o vírus permanecer no corpo por um longo período de tempo após o desaparecimento dos sintomas. Nestes casos, o desaparecimento dos sintomas é considerado como alta hospitalar, sem haver certificação laboratorial do desaparecimento do vírus.

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