Covid-19: Volta às comidas da Páscoa, onde as quebras de vendas vão dos 70 aos 90%

Amêndoas, folares, cabritos, queijos acumulam-se nas lojas, armazéns, câmaras frigoríficas. A pandemia abalou profundamente negócios que têm nesta época um dos seus momentos altos do ano.

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Amêndoas de Moncorvo Manuel Roberto

Lojas fechadas, grandes almoços de família adiados para melhores dias, listas de encomendas reduzidas ao mínimo – quem tem na Páscoa um dos melhores períodos de negócio do ano, com a venda de produtos tradicionais da época, está desanimado ou mesmo, em alguns casos, desesperado. A pandemia do novo coronavírus afectou profundamente os festejos. Fomos ver como se estão a vender os produtos que em anos normais enchem as nossas mesas por esta altura.

Cabrito – Há poucos dias, os produtores de cabrito de raça Serrana DOP (Denominação de Origem Protegida) lançaram um alerta através do WhatsApp: tinham 800 cabritos que não conseguiam vender. Rapidamente a notícia espalhou-se, saltou para os jornais, e em menos de um dia as encomendas foram tantas que os cabritos esgotaram. No entanto, para quem não tiver conseguido comprar por esta via, continua a haver cabrito em alguns talhos e hipermercados.

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Cabrito é um dos pratos tradicionais da Páscoa Nelson Garrido

Pão-de-Ló de Ovar – Com a decisão do Governo de estabelecer uma cerca sanitária em torno do município de Ovar para isolar os casos de covid-19 aí identificados, os produtores deste Pão-de-Ló tradicional, de massa leve e interior húmido, estão a ter uma “quebra muito significativa” nas vendas, diz José Sousa, da Associação de Produtores de Pão de Ló de Ovar IGP (Indicação Geográfica Protegida).

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Pão-de-Ló de Ovar (foto do livro A Doçaria Portuguesa - Centro, de Cristina Castro) Gonçalo Barriga

A maioria das 12 empresas produtoras certificadas são familiares e já tinham parado de trabalhar uns dias antes da imposição da cerca, mas a proibição de vender fora do concelho este produto, cuja origem remonta ao século XVIII, significa uma perda que José Sousa calcula entre 85 e 90% no rendimento destas famílias. Só dois dos produtores têm o pão-de-ló ultra-congelado e será este que quem tiver sorte poderá ainda encontrar à venda fora do concelho de Ovar nas grandes cadeias de distribuição.

Folares de Valpaços e Olhão – O folar salgado, típico de Valpaços (IGP), com diversos enchidos de fumeiro, sofreu este ano um duro golpe com o cancelamento da 12.ª edição da Feira do Folar, na qual, diz Teresa Pavão, vereadora da Câmara de Valpaços, se vendiam cerca de 50 mil quilos de folar. A Câmara, em conjunto com associações regionais, está a apoiar a organização de canais de distribuição para “todos os produtos certificados com logística instalada”, sendo que algumas padarias têm canais próprios de revenda que permitem fazer chegar o produto às grandes superfícies, sobretudo no Norte do país.

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Folar de Valpaços Manuel Roberto

No Algarve, onde o Folar de Olhão, que tem características completamente diferentes, é um doce muito procurado na Páscoa, Filipe Martins, da padaria e pastelaria Kubidoce, diz que este é um ano atípico, claro, mas está, apesar de tudo, surpreendido com a procura que tem tido nas suas lojas, em Olhão e na recém-inaugurada em Vila Real de Santo António, que estão abertas, permitindo a entrada a apenas um cliente de cada vez.  

Filipe acredita que o sucesso tem, em grande parte, a ver com o facto de a sua oferta ser diferente. “Fazemos fermentações longas, não usamos açúcar branco nem gorduras hidrogenadas”, explica. A Kubidoce tem vários tipos de folar, mas o que tem tido maior procura é o de batata-doce com amêndoa.

Amêndoa de Moncorvo e de Portalegre – Do outro lado da linha telefónica, Dina Morais mostra-se desolada. “Não se vê uma pessoa nas ruas. Moncorvo está deserta, parece que houve uma guerra. É a maior desgraça da minha vida”, lamenta. A loja desta produtora artesanal da Amêndoa Coberta de Moncorvo (IGP) está cheia de produto, mas clientes, nem vê-los. De portas fechadas há mais de três semanas, o telefone não toca, as encomendas não aparecem.

“Se me tivesse telefonado por esta altura no ano passado, eu nem conseguia dar resposta, normalmente não temos mãos a medir, com todas as pessoas que nos visitam. Esta Páscoa facturei uns 100 ou 200 euros”, diz Dina. Produto não falta, e quem quiser só tem que procurar a página da Arte, Sabor e Douro no Facebook ou ligar à doceira (que também vende compotas, entre outras coisas) para o 965 542 387.

Mais para sul, em Portalegre, José Júlio Vintém, do restaurante TombaLobos, aproveita sempre esta época para ajudar os pais a fazer e a vender a amêndoa de Portalegre, outra das especialidades da Páscoa. E também ele está desanimado. “Está muito fraco. As pessoas nem se apercebem que é Páscoa. As lojas pedem-nos um décimo do que é habitual.”

Como a produção é artesanal, tiveram que a parar porque já tinham amêndoas mais do que suficientes para a procura. “Este é um negócio familiar que funciona dois meses por ano, em Março e Abril. Costumamos ter uma média de doze encomendas por dia, este ano se tivermos doze no total já foi muito”.

Queijos – O queijo faz também parte das mesas da Páscoa e está igualmente a ressentir-se com a pandemia do novo coronavírus. Com os restaurantes fechados e os almoços de família reduzidos, os produtores de Queijo Serra da Estrela estão “com uma quebra de no mínimo 70%”, alerta Manuel Marques, presidente da Associação Nacional de Criadores de Ovinos da Serra da Estrela (Ancose). “No ano passado por esta altura o queijo já tinha ido quase todo.”

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Produção de Queijo Serra da Estrela Ricardo Lopes

Os mais afectados são os pastores. “Num rebanho de 100 ovelhas, um pastor tem um prejuízo de mil euros.” O cenário é preocupante, porque é preciso ordenhar os animais todos os dias, as fábricas de queijo já não aceitam mais leite, e mesmo o que compram passou de 1,10 euros para 0,70 cêntimos por litro. “Isto é o arruinar da ovinicultura e do Queijo da Serra da Estrela”, afirma o dirigente da Ancose, adiantando que a associação está a disponibilizar as suas câmaras frigoríficas para armazenar leite e queijo.

O mesmo está a ser feito em Trás-os-Montes pela cooperativa Leicras, para os produtores que sofreram quebras de 90% nas vendas de queijo DOP das cabras de raça Serrana. “Vamos armazenando o leite enquanto conseguirmos”, diz Arménio Vaz, um dos responsáveis.

Para ajudar os pequenos produtores, o El Corte Inglès está a organizar desde dia 6 uma feira (na loja e online) com “mais de 100 diferentes qualidades de queijos tradicionais portugueses que abrangem todo o continente e ilhas, provenientes de meia centena de produtores”, alguns dos quais não eram até agora seus fornecedores.

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