Da Páscoa, dos modelos e da covid-19

A Páscoa está quase aí. Pensar na Páscoa evoca as memórias vívidas de aromas de infância, o cheiro doce das amêndoas, dos ovos cozidos e também dos marcadores (as “borronas”) com que os pintávamos, da vinha de alho do cabrito, do leite e do café ao pequeno almoço, das pétalas com que atapetávamos o caminho a convidar a visita da cruz e do compasso, das vestes do padre e dos acompanhantes, do incenso e saliva na cruz, o aroma quente do cabrito a assar no forno que enche a casa, o cheiro das frutas da salada, do pão de ló… Envoltas nestes aromas vêm as memórias da família reunida por ocasião da Páscoa. Recordamos pais, irmãos, avós, madrinhas e padrinhos, tios e primos, alguns que já não voltaremos a encontrar. Recordamos todos aqueles que nos serviram (e servem) de exemplo. Aqueles com cujas estórias de vida aprendemos, uns que tentamos emular e outros que personalizaram erros que gostávamos de evitar. São os nossos modelos exemplares que guiam as decisões que tomamos na vida.

Hoje fala-se muito de modelos. Modelos matemáticos ou computacionais que nos dizem porque estamos em casa e também quando e como sairemos daqui. Modelos cujos resultados justificam o afastamento que nos impede de voltar encontrar a família e sentir uma vez mais os aromas da infância nesta Páscoa. Interrogamo-nos sobre os modelos da epidemia que as autoridades de saúde pública utilizam na gestão da crise. Questionamos os modelos económicos e financeiros que determinarão a nossa vida quando o isolamento acabar.

Como modelador por vocação e profissão, tenho olhado hipnotizado para as curvas de crescimento da pandemia de covid-19. Represento graficamente os dados em escala semi-logarítmica porque esta representação revela as subtilezas e as tendências da primeira e a segunda derivada do número total de casos confirmados, casos activos, mortes, etc. Comparo diariamente as curvas dos vários países, acrescentando um novo ponto a cada uma em cada dia. Procuro antecipar o que amanhã trará e confronto as minhas previsões com os novos valores da Direcção Geral da saúde (DGS), do Centro Europeu para Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC), dos Centros para Prevenção e Controlo das Doenças (CDC) dos Estados Unidos.

As curvas de alguns países vão-se suavizando, numa matemática monótona. Outros países são mais intrigantes, como o Irão, cuja taxa de transmissão nas últimas semanas, acelerou-se surpreendentemente. Porquê esta mudança repentina no ritmo de crescimento da epidemia neste país, que anteriormente parecia abrandar? Faço passar entre os pontos as soluções dos modelos epidemiológicos SIR e SEIR e outros variantes mais ou menos sofisticados que leio na literatura científica ou que crio eu mesmo. Sofistico também os métodos de ajuste dos modelos. Começando pelo “olhómetro”, passo aos mínimos quadrados, à máxima verosimilhança e, finalmente, à inferência bayesiana. Não me esqueço de que estes modelos são uma simplificação útil mas radical de uma realidade infinitamente complexa. Uma realidade de milhões de pessoas, que olham o mundo ao seu redor e agem de acordo com o que vêem e com base nos seus próprios “modelos exemplares”.

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Curvas do Irão (IR), Itália (IT) e Coreia do Sul (CS)

Começo então a olhar para as curvas dos vários países como modelo para a curva de Portugal. Cada uma destas curvas representa milhões de pessoas e as suas respostas às medidas de saúde pública implementadas no seu país. Atiro fora as equações e os métodos de inferência. Simplesmente translado as curvas de forma a sobrepor semanas e números numa curva sobre as semanas e os números de outra curva, assim como quem modela a estrutura tridimensional de uma proteína por homologia com outras proteínas. Será que a Coreia do Sul é um bom modelo para Portugal? Não, acho que perdemos esse barco. Será que a Itália é? Os pontos transladados parecem coincidir. E se fosse o Irão? Uma vez transladados os pontos do Irão também coincidem com os de Portugal há mais de uma semana. Será que o Irão é o país-modelo que melhor prevê a evolução da curva portuguesa nas próximas semanas?

Esta possibilidade renova a minha curiosidade pelas causas da intrigante mudança de ritmo da curva da epidemia de covid-19 no Irão. Uma busca no Google com as palavras “Iran”, “second”, “wave” e “covid” diz-me rapidamente que as autoridades iranianas temiam que as comemorações do Novo Ano persa, mesmo se suspensas por decreto, dessem origem a uma segunda vaga de transmissão. Novo Ano persa? Sexta-feira, 20 de Março de 2020. Isso foi cinco dias antes do ponto de inflexão da curva do número acumulado de infectados confirmados no Irão, o dia em que este número começou a crescer com uma taxa mais alta. Cinco dias é também a duração média do período de incubação do vírus SARS-CoV-2.

A Páscoa está quase aí. Qual será a curva que servirá de modelo para prever a evolução da epidemia em Portugal nas próximas duas semanas? A curva de Itália, onde no período transladado de há várias semanas, as pessoas, então sem nada que celebrar, permaneceram em casa, ou a do Irão (IR), onde alguns insistiram em sair em celebração tradicional. A resposta a esta pergunta envolve mais do que duas curvas com formas diferentes. São vários milhares de pessoas infectadas, muitas das quais, modelos de vida para tantos outros, poderão passar à memória.

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