Soltem os prisioneiros?

O Governo e a ministra da Justiça estavam com um problema complexo em mãos: ou nada faziam e arriscavam um contágio em massa, com morte de reclusos, guardas prisionais, técnicos de reinserção social e outros funcionários civis, ou intervinham.

A 1/4/2020 existiam em Portugal 12715 reclusos em cumprimento de pena ou sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva (2284). Os últimos dados disponíveis quanto à (sobre)lotação prisional (2018) indicam que a capacidade instalada era de 12934 para 12867 reclusos a 31/12/2018.

De acordo com a legislação, os reclusos mantêm a titularidade de todos os direitos fundamentais, excepto aqueles que, em virtude do cumprimento da pena ou da medida de segurança, com eles não sejam compatíveis. Dúvidas não há, portanto, que o direito à saúde, inscrito na Constituição, continua a ter os reclusos por destinatários.

As medidas de graça ou de clemência – amnistia, perdão genérico e indulto – são justificadas tendo em conta um princípio de humanidade e, segundo alguns autores, uma forma de corrigir, até certo ponto, decisões injustas.

Quando lecciono esta matéria, discordo totalmente deste último fundamento, por ser um desrespeito pelo conteúdo da sentença ou do acórdão e por não ser esta uma forma para reparar “decisões injustas”, para o que existirá o recurso ordinário ou o extraordinário de revisão. Também conto aos estudantes que celebrações do 25 de Abril ou a vinda do Papa já levaram a Assembleia da República (AR) a amnistiar crimes. Foi assim nas décadas de 1980 e 1990.

Por princípio, tirando o indulto, pela sua natureza mais pessoal e concreta, e de que os últimos Presidentes da República têm feito – e bem – um uso muito parcimonioso, entendo que as outras duas figuras – amnistia e perdão genérico, competência exclusiva da AR – não devem ser utilizadas, pois são uma forma já nada encapotada de tirar pressão sobre o sistema prisional.

E se defendo ao longo de tantos artigos jurídicos e no tempo em que colaborei com a Pastoral Penitenciária, que os reclusos são os esquecidos dos esquecidos, por não renderem votos, pelo que, como regra, não há verdadeiro trabalho de reinserção social intramuros, também me parece que estas medidas de graça são, como regra, de evitar. São um desrespeito pela decisão do tribunal sentenciador e podem trazer um dos fins das sanções criminais – a prevenção geral, ou seja, a sua eficácia dirigida à totalidade da comunidade – a cotas tão baixas que se desacredite na justiça. Com o que esta perde legitimidade prática, o que alimenta discursos populistas de extrema-direita que, com a aprovação na generalidade da proposta de lei de que falamos, podem sair reforçados, sobretudo quando se mente – e parece que o deputado em causa é jurista – em relação ao âmbito de aplicação da proposta, ao afirmar-se que ela contempla crimes que uma simples leitura mostra não estarem lá inscritos.

No passado mês, a ONU, o Conselho da Europa e uma série de ONG defenderam mecanismos de flexibilização do cumprimento das penas, os quais poderiam passar por libertações antecipadas. Trata-se de meras recomendações não vinculativas, sabendo-se que alguns países o fizeram, sobretudo no Norte do Velho Continente.

Porém, aí não há sobrelotação prisional e a estrutura da criminalidade não é a mesma que cá. O Governo, em especial a ministra da Justiça, estavam com um problema complexo em mãos: ou nada faziam e arriscavam um contágio em massa, com morte de reclusos, guardas prisionais, técnicos de reinserção social e outros funcionários civis, ou intervinham.

Não tenho dúvidas que a inacção teria sido terrível e contrariaria o direito à saúde dos reclusos de que falei acima. E isto nada tem que ver com ser de direita ou de esquerda, mas somente com o cumprimento da lei, a qual, porém, deveria ter sido explicada melhor à generalidade dos cidadãos. Não nos podemos dar ao luxo que a ideia que passe – e sei que em muitos sectores ela ficará – é a de que se vai combater a sobrelotação prisional por decreto e não com medidas reais que permitam cumprir as decisões judiciais. Nada é mais pernicioso ao Estado de Direito que o divórcio dos cidadãos quanto às leis da República, por nelas não se reverem. Do mesmo passo que, sem ser ético-retributivo, mas apenas racional, a pena deve ser sempre a imposição de um quantum de sofrimento, humanamente suportável e sem afectar a sua dignidade. Cantos de sereia que negam isto, ainda que de jeito subliminar, são romantismos péssimos para a confiança das pessoas no Direito.

Donde, este será um dos exemplos que passarei a dar nas aulas em que as medidas de graça se justificam, exactamente para a protecção dos direitos fundamentais dos reclusos que, nos termos da lei, se mantêm, como a saúde. É evidente, também, que esta é uma forma crua de demonstrar a desadequação do nosso parque prisional, o desinvestimento de décadas, a circunstância de as prisões não darem votos e de o cumprimento da pena privativa da liberdade, como regra, em face dessa apatia, não atingir os seus objectivos.

Quanto à concreta solução legislativa, reservo uma análise do que sair do debate na especialidade para um futuro artigo, sendo desde já exacto que se deve prever com muita clareza quem vai ter competência para quê: o juiz de execução das penas ou o da condenação. Do modo como está, há aspectos controvertidos e a execução desta lei, para cumprir o seu objectivo, necessita de normas límpidas e de um reforço dos apenas 20 juízes que trabalham nos juízos de execução das penas (já agora, a proposta ainda fala em tribunais de execução das penas). Sem isto, um objectivo válido terá sido em vão.

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