Depois da pandemia, uma só solução: a Europa Social

Se durante séculos, tem existido uma cultura da “má-língua” e de que o que fazemos não presta e o que é lá de fora é que é bom, é tempo de acabarmos com isto porque o nosso país detém em muitas áreas posições que só nos devem orgulhar.

A chamada construção europeia tem sido um chavão que tem dado para tudo, menos para o que devia.

Os antecedentes directos da actual União Europeia (UE) assentaram em objectivos meramente políticos e económicos: a criação da CECA (Comunidade Económica do Carvão e do Aço) em 1951 pela então República Federal Alemã e a França, e a CEE (Comunidade Económica Europeia) em 1957 através do Tratado de Roma.

A CEE apareceu com o objectivo de se tornar numa plataforma de reforço das sociedades de mercado e simultaneamente num bloco político-ideológico de barreira ao bloco de Leste, num ambiente agudizado de clima de guerra fria.

Entretanto, no pós II Guerra, com a necessidade imperiosa de proceder à reconstrução e recuperação económica de diversos países devastados pela guerra em vidas humanas e em estruturas produtivas, os Estados adquiriram o papel decisivo e foram surgindo as bases do chamado “Estado de Bem-Estar Social” para o qual foram convergindo diversos quadrantes políticos e partidários desde partidos democratas cristãos a partidos comunistas.

Mas antes dos referidos antecedentes directos, o Conde Coudenhove Kalergi, aristocrata austríaco e filho do embaixador do Império Austro-Húngaro no Japão, elaborou um artigo polémico que foi publicado nos jornais de Berlim e Viena no dias 15 e 17 de Novembro de 1922 com o título  “Pan Europa”.

A 3 de Outubro de 1926, este aristocrata criou uma associação, a União Paneuropeia, que realizou o seu congresso em Viena com mais de 2000 participantes. O projecto desta união era a cooperação pacífica entre Estados soberanos. Aliás, o sonho deste aristocrata era a constituição de “uma Europa pacífica, unida e igualitária de Portugal à Polónia”.

Aristide Briand, nomeado Prémio Nobel da Paz nesse ano de 1926 e primeiro-ministro de França várias vezes, foi eleito presidente da União. Por volta de 1933, Hitler dissolveu esta organização.

Este projecto, teve na altura o apoio de intelectuais como Guillaume Apolllinaire, Albert Einstein, Sigmund Freud, Thomas Mann, José Ortega y Gasset, Pablo Picasso entre outros. Nas últimas décadas do século passado, as instâncias dirigentes da UE, com o advento da onda neoliberal, ainda esboçaram a teoria do projecto social europeu que nunca foi levado minimamente a sério.

O fracasso deste projecto, a degradação contínua das condições de vida, o aumento do desemprego e da exclusão social, o distanciamento notório dos problemas concretos dos cidadãos, bem como o facto das lideranças governativas na generalidade dos países europeus ter atingido nos últimos 20 a 30 anos uma mediocridade política confrangedora e impensável, têm determinado uma profunda desilusão com a UE e o aparecimento de organizações populistas de extrema-direita com um primarismo argumentativo de uma chocante boçalidade, mas com um apoio eleitoral crescente.

Neste contexto, a onda totalitária neoliberal que desenvolveu a destruição das políticas públicas, que debilitou as funções solidárias e de equidade social dos Estados e que parasitou desavergonhadamente os dinheiros públicos para rápido e fácil enriquecimento dos accionistas de grandes consórcios privados, acabou por dilacerar os pilares da dignidade humana.

Esta pandemia, que ninguém pode, ainda, prever quando permitirá o regresso à normalidade do dia-a-dia, está já a pôr a nu as incapacidades de muitos governos, está a constituir um teste violento às fragilidades dos vários sistemas de saúde, e até a desmascarar o desprezo gritante de diversos governantes pela vida dos seus cidadãos.

Outras conclusões também já visíveis, é que a tal “mão invisível do mercado” desapareceu de cena, a importância do Estado é agora inquestionável porque a sua evidente superioridade sobre o mercado é que vai permitir garantir os direitos básicos às pessoas e ajudar a recuperação económica de muitas empresas.

A sociedade contemporânea foi sendo construída na base do conceito neoliberal da externalização dos riscos para terceiros, de umas classes sociais para outras, de umas pessoas para outras, entre países e entre gerações.

A sociedade do risco zero não existe.

Esta cultura da externalização tornou-se o nosso maior risco.

De tal forma, que nestes dias pesados deste embate brutal da pandemia até temos visto conversões aceleradas de neoliberais fanáticos em fervorosos keynesianos.

A Europa precisa de ser refundada noutras bases, com uma perspectiva muito clara da construção da Europa Social, com políticas públicas fortes, com Estados centrados no aprofundamento da coesão social, além de mais democracia e mais participação dos cidadãos.

Sem isto, não custa nada adivinhar que mais cedo ou mais tarde assistiremos à implosão da UE e a um avanço impetuoso da extrema-direita e do fascismo no palco europeu.

É que nalguns países as botas cardadas do fascismo já se ouvem nas calçadas das suas cidades. E a UE continua a tolerá-los no seu seio, mesmo quando estão em curso golpes como acontece na Hungria.

Apesar de estarmos confrontados com esta “guerra" terrível, importa reconhecer que a equipa titular do Ministério da Saúde tem estado à altura das suas responsabilidades, nunca se escondendo em assumir as suas responsabilidades e não adiando esforços nesta tarefa tão desgastante a nível físico e psicológico, porque são vidas humanas que estão em jogo.

A nível internacional, são hoje reconhecidos ao nosso país grandes atributos no desencadeamento oportuno de medidas enérgicas contra a pandemia.

É sempre possível fazer melhor e naturalmente que existem aspectos que poderiam ter sido organizados de maneira diferente, mas comparemo-nos com os outros países europeus e aí podemos fazer uma avaliação mais justa e rigorosa do que tem sido feito no nosso país nestas semanas diabólicas.

Por outro lado, enquanto que num passado não muito distante tivemos governantes que se apresentavam nas instâncias da UE com a etiqueta de bons alunos e bem comportadinhos, sempre de mão estendida para as “esmolas” que os países mais fortes nos quisessem oferecer, hoje temos um primeiro-ministro que não admite atitudes de chocante chauvinismo de alguns governantes de países, como eles dizem, do Norte, afirma bem alto a dignidade do nosso país e assume uma atitude de forte pendor humanista ao ser solidário com outros povos mergulhados numa situação ainda mais dramática.

Se durante séculos, tem existido uma cultura da “má-língua” e de que o que fazemos não presta e o que é lá de fora é que é bom, cultura esta que até deu origem a uma corrente literária no início da nossa nacionalidade que foram as chamadas cantigas de “escárnio e maldizer”, é tempo de acabarmos com isto porque o nosso país detém em muitas áreas posições que só nos devem orgulhar.

Eu tenho orgulho em ser português.

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