Como fazer um assassino

A nossa Justiça pode ter muitas falhas e imperfeições. Mas o que os tribunais americanos podem fazer a algumas pessoas, culpadas ou inocentes, chega a parecer uma farsa de Justiça.

Consequência inesperada da reclusão domiciliária: fui apanhado pela Netflix. Nunca tinha visto uma daquelas séries de que toda a gente fala, tirando as antigas que passavam semanalmente nas televisões. A conselho da minha filha, resolvi agora ver Making a Murderer. Um thriller da vida real, filmado durante 13 anos, que segue a história de dois homens, condenados por um crime que poderão não ter cometido. As personagens e a história do documentário e do caso real, que anda pelos tribunais americanos desde 1985, são as mesmas. Steven Avery esteve 18 anos preso por um crime de violação que não cometeu. Dois anos depois de ser libertado, foi novamente preso, acusado e condenado a prisão perpétua, por homicídio, juntamente com o sobrinho, Brendan Dassey, de 16 anos de idade. Ambos lutam nos tribunais — e também alguém por eles na Netflix — para demonstrar a sua inocência.

Para um juiz, com quase 30 anos de experiência a avaliar pessoas e factos, para descortinar a verdade nos pormenores, contradições e imprecisões das provas, esta história é perturbadora de tirar o sono. Entra pelos olhos dentro que aquelas condenações não podem estar certas. E ver, ao vivo, na série, o desenrolar infindo e inglório daquele calvário judicial da vida real, que dura há 35 anos, é profundamente angustiante. Apetece saltar lá para dentro e berrar: “Abram os olhos!”

A nossa Justiça pode ter muitas falhas e imperfeições. Mas o que os tribunais americanos podem fazer a algumas pessoas, culpadas ou inocentes, chega a parecer uma farsa de Justiça. Isso, podemos ter todos a certeza, em Portugal não existe. E era bom que quem passa a vida a invejar a que se faz lá fora, só para diminuir o que há cá dentro, visse esta série.

Nunca condenaríamos um jovem de 16 anos de idade, com manifesto défice mental, com base, exclusivamente, numa confissão escandalosamente arrancada e manipulada pela polícia, fora da presença do advogado, fechando os olhos a uma negação convincente em julgamento e à completa ausência da mínima prova corroborante. Não teríamos uma acusação apenas interessada em ganhar o caso para mostrar serviço, em vez de descobrir a verdade e fazer justiça. O julgamento nos nossos tribunais não seria feito por um juiz sem poderes, a assistir, passivo e alheado, a uma luta teatralizada de partes, sem perguntar, sem intervir, sem querer saber de as provas não baterem certo umas com as outras. A decisão de mandar uma pessoa apodrecer na prisão até morrer não seria dita apenas com um seco “culpado” ou “inocente”, sem uma única palavra de fundamentação. No nosso sistema de recursos, o condenado não ficaria impedido de impugnar a substância da decisão, sujeito, anos e anos a fio, a procedimentos sem prazo, discricionários e imprevisíveis, desenhados somente para perpetuar erros e não para corrigir injustiças.

Cá, no nosso “pequenino” país que não foi à Lua mas pode ensinar muito a alguns “grandes”, o crime prova-se no tribunal, à frente do juiz, com contraditório entre acusação e defesa, com acusados que não têm de provar a sua inocência, com procuradores sujeitos aos deveres de verdade e objectividade, com juízes dotados de poderes efectivos para intervirem, que questionam as testemunhas e exigem novas provas, com sentenças fundamentadas, em que se explica até à exaustão porque se decidiu de uma maneira e não de outra, e com um sistema de recursos em que, com razoável rapidez, é possível detectar e corrigir erros, nos factos provados, no direito aplicado e na pena imposta. Em Portugal, Steven Avery e Brendan Dassey podiam ter sido injustamente condenados, mas não daquela maneira, nem com aquele resultado e muito menos com aquela montanha tão alta de obstáculos para reverter uma decisão que, aos olhos de qualquer pessoa razoável, parece errada e injusta.

Vou no 4.º episódio da 2.ª temporada. Não sei o fim da história. Deve ser péssimo. O caso está pendente, com recursos e mais recursos. Há poucos meses, outro condenado por homicídio, numa nova reviravolta, declarou que foi ele que matou Teresa Halbach — a alegada vítima de Steven Avery e Brendan Dassey. O caso judicial, pelos vistos, está para durar. E a série da Netflix também. Dois julgamentos paralelos. Já se fala na 3.ª temporada.

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