A anomalia chinesa e a pandemia

A China despertou há muito e o mundo já tremeu, conforme o livro de Alain Peyrefitte previa. Amanhã terá de ser a vez de o Ocidente acordar para o significado de um poder maior deste regime.

nove meses, e por mais de uma vez, tal como outros, considerei que a dependência comercial e económica da China em muitos países europeus era preocupante. Especialmente em Portugal.

Entre um dos maiores erros de casting da história ocidental que é a atual presidência americana, uma União Europeia cada vez mais dividida e inoperante nas grandes questões comerciais ou geopolíticas, e sem que nada de substancial se tivesse alterado nos últimos dois anos, o regime chinês lá foi fazendo o seu caminho.

A caracterização desse regime foi-nos chegando de várias formas. Seja através de informações de pessoas silenciadas das formas mais tortuosas, seja pelo controlo absoluto dos seus cidadãos num sistema de crédito social sinistro. Nunca faltaram evidências sobre o perigo de um poder maior e global do Presidente Xi Jinping. Nem do modus operandi de empresas como a Huawei, que sempre representaram um atropelo aos direitos e liberdades conquistadas na Europa. Mesmo assim, o fascínio de tantos gestores, empresários e políticos por esta tecnologia de ponta suplantava qualquer outro “pormenor.” Salvo raras e nobres exceções, era vê-los como compradores por encomenda e em delírio com as novas empresas chinesas no topo dos rankings globais. Pouco ou nada interessou que estas fossem controladas por este mesmo regime: as condições da mão de obra de quem as operava lá longe ou, até mesmo, o porquê de atingirem o topo dessas classificações. Tal e qual uma violação constante de todas as regras da Organização Mundial do Comércio.

Tudo muito bonito, até que a hecatombe que veio de Hong Kong se interpôs no caminho. O presumível efeito duradouro ameaçava colocar em causa os desígnios que o regime chinês tinha para o país no mundo. A utilização da força excessiva contra os manifestantes ao longo de várias semanas, enquanto o mundo espreitava, caiu mal, mas o jogo de paciência foi sempre posto de parte pelas autoridades chinesas. Essencialmente, porque essa diplomacia obrigaria a um conjunto de regras democráticas que pouco servia os seus interesses e com ela cairia a tal competitividade “desleal” comercial.

Foi no meio deste caos asiático que surgiu o surto que comanda hoje as nossas vidas e Hong Kong passou para segundo plano.

Antes que o leitor se questione: não estou a supor com isto que tenha existido qualquer estratagema por parte do governo de Xi Jinping relacionado com o surgimento da covid-19. Tenho pouca paciência para teorias da conspiração, mas a interpretação independente dos factos interessa-me e o que veio depois a isso obriga.

Desde o seu surgimento em Wuhan no mês de Novembro, passando pelo silenciar e presumível assassinato do primeiro médico que alertou para os riscos da covid-19, até à ocultação de evidências científicas durante largos meses e ainda ao adiamento da comunicação do vírus à Organização Mundial da Saúde (OMS), é hoje claro que, além do dolo com que agiu, existe uma mão criminosa do Governo chinês que deveria ser julgada depois de tudo isto passar. Claro que até pode ser pouco expectável que o mundo de amanhã o sugira, mas nenhum governo o deverá esquecer.

É inegável que praticamente todos os países ocidentais precisam da China hoje para desagravar a sua crise sanitária e humana. Seja através de equipamentos, empresas ou pessoal médico, poucos deixam de poder recorrer ao seu apoio. Dificilmente poderia ser de outra maneira. Mas, necessidades à parte, o que impressiona é ouvir António Mexia com um discurso bem engraxado na presença do embaixador chinês, que além de ignorar tudo o que antecedeu o contexto atual coloca-nos sempre um passo à frente de qualquer outro país na transmissão dessa “ignorância” e hipocrisia. Será que ainda não aprendemos mesmo nada? Parece que não.

Também não deixa de ser irónico que um regime que agiu como o Governo chinês tenha arrancado num outro tipo de viagem pelo mundo depois da propagação da covid-19. Levados por um certo sentimento de culpa, mas com o objetivo delineado de um poder maior na geopolítica através deste vírus. O tal da nação indispensável. Só que a narrativa chinesa não convence ninguém a não ser António Mexia e até as contradições nos apoios aos governos de vários países europeus já são muitas. Nada disto invalida que têm sido bem-sucedidos noutro tipo de hard-power.

Através dele surge a pergunta essencial à qual, mais cedo do que tarde, não poderemos fugir: queremos mesmo ser influenciados por este modelo no ocidente e no mundo depois da covid-19?

Quero acreditar que não.

Apesar da divisão e do impasse em que se encontra o projeto europeu, expectante no caminho da resolução económica desta crise, a vertente comercial com o gigante asiático terá de ser diferente amanhã para que isso não aconteça. Sob pena também de a dependência chinesa, de vez e transversalmente, dar cabo do investimento na produção das empresas europeias e dos modelos sociais que conquistámos.

É difícil projetar cenários no atual contexto. Mas sobram alguns inevitáveis para o pós-covid-19: com ou sem Trump, esta China será sempre uma rival sistémica dos EUA. Junte-se a isso um decréscimo significativo nas trocas comerciais e económicas com os países europeus e o seu objetivo da hegemonia global ressente-se. De forma inevitável.

A China despertou há muito e o mundo já tremeu, conforme o livro de Alain Peyrefitte previa. Amanhã terá de ser a vez de o Ocidente acordar para o significado de um poder maior deste regime. Para evitá-lo, só com um retraimento nas exportações e importações para o país. E do poder das suas empresas na Europa. Ignorá-lo é continuar a deixar que os factos se apresentem como teorias da conspiração. Ou pior: que outras teorias sejam vendidas e sirvam como propaganda suja do governo de Xi Jinping.

De uma forma ou de outra, a China só terá o peso global que os europeus deixarem que ela tenha.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico             

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