Morreu John Prine, um tesouro da canção americana

Lenda da country e da folk reverenciada por Bob Dylan e Johnny Cash, foi mais uma vítima da covid-19 nos Estados Unidos. Tinha 73 anos.

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DANNY CLINCH

Admirado por Bob Dylan e Johnny Cash, John Prine, lenda da canção norte-americana recentemente redescoberta e resgatada, referência da country e da folk do seu país, morreu na noite passada, aos 73 anos, vítima da covid-19. A sua morte foi anunciada pela família, que há uns dias tinha informado que o músico estava internado na Unidade de Cuidados Intensivos de um hospital de Nashville, no Tennessee. Sobrevivera a um cancro no pescoço e a outro nos pulmões (era um fumador inveterado), mas o novo coronavírus levou-o em apenas duas semanas, como nota lugubremente o diário espanhol El País

Carteiro de profissão, John Prine foi descoberto no circuito folk de Chicago por Kris Kristofferson, que o editou através da Atlantic em 1971. Mais tarde, nos anos 80, fundou a sua própria editora, a Oh Boy. O seu último álbum, Tree of Forgiveness, editado em 2018 com a ajuda de Dan Auerbach, dos Black Keys, trouxe-lhe um último momento de visibilidade – o culminar de um processo de resgaste, mobilizado sobretudo pelas novas gerações da música norte-americana, que tivera no álbum-tributo Broken Hearts and Dirty Windows: The Songs of John Prine (2010) uma primeira manifestação. Nele se juntaram nomes como My Morning Jacket, Lambchop, Josh Ritter, Drive-By Truckers ou Justin Vernon (Bon Iver).

Chamavam-lhe, apesar de o anteceder na longevidade da carreira discográfica, “o Bruce Springsteen da country”. Ainda que nunca tenha tido um álbum que o catapultasse para o estrelato, a comparação faz sentido, tendo em conta que, tal como Springsteen (que aliás também era seu admirador), a matéria de Prine era o povo do seu país, eram as pequenas histórias do quotidiano que, nas suas mãos e na sua voz, se transformavam em grandes narrativas do espírito americano, das batalhas diárias e dos conflitos que aquele atravessou ao longo dos tempos.

O seu trabalho enquanto carteiro, a ocupação profissional que tinha quando da edição do homónimo álbum de estreia, em 1971, deu-lhe a proximidade e a paisagem humana de que extraiu, por exemplo, Hello in there, retrato duro mas tocante da profunda solidão de um velho abandonado às suas memórias, ansioso por alguém que lhe estenda a mão.

Os anos passados no exército (foi recrutado enquanto o Vietname ardia em conflito, mas teve a sorte de ser enviado para uma base alemã onde contribuiu para o esforço de guerra “bebendo cerveja e fingindo reparar camiões”) e o convívio, de volta aos Estados Unidos, com amigos veteranos de guerra e os traumas que enfrentavam conduziram-no a Sam Stone, história de um jovem enviado para combater longe, sem saber porquê, e cujo trauma no regresso, abandonado por todos, só se torna tolerável na ponta de uma agulha: "There's a hole in daddy's arm where all the money goes / Jesus Christ died for nothin, I suppose”, diz o refrão.

Além do olhar justo e compassivo e do talento enquanto escritor de narrativas sob a forma de canção, John Prine mostrava nas letras um humor desconcertante que o aproximava de um especialista na questão, Randy Newman. Mas era sobretudo o seu questionamento da vida e do nosso lugar nela que sobressaía, e que o tornou tão influente para tantos.

Em 2016, Bonnie Raitt, que popularizou Angel from Montgomery, canção sobre um casamento falhado (e era demasiado tarde para o salvar), dizia à Rolling Stone que, tendo em conta a conjugação de todas aquelas características, John Prine seria “provavelmente o mais próximo que têm todos os que não tiveram a bênção de ver Mark Twain em pessoa”. Bob Dylan, outro admirador, dizia que as suas canções eram “puro existencialismo proustiano": “Trips mentais do Midwest elevadas ao último grau.”

As vozes da country, os heróis do blues

Nascido nos arredores de Chicago, em Maywood, a 10 de Outubro de 1946, Prine teve no pai e no irmão mais velho os seus primeiros formadores musicais. O irmão ensinou-lhe os rudimentos da guitarra e o pai, operário e dirigente sindical local, apresentou-lhe Hank Williams, Carter Family e Jimmie Rodgers. As vozes e as personagens da velha country, a par dos heróis do blues, foram a primeira camada a que foi beber. Juntaram-se-lhes depois os heróis da sua geração, Bob Dylan e Johnny Cash – Prine dizia que tentava ser algo a meio caminho entre um e outro —, e, naturalmente, o talento natural para a escrita de canções e um olhar profundamente humano.

Carteiro durante o dia, músico em palco durante a noite, Prine veria a sua carreira arrancar profissionalmente quando, após tocar três canções num concerto de Kris Kristofferson, o influente crítico Roger Ebert publicou um artigo no Chicago Sun-Times intitulado “Carteiro cantor entrega uma mensagem poderosa em poucas palavras”. No ano seguinte, editava o álbum de estreia pela Atlantic, a editora de Ray Charles, Aretha Franklin, Otis Redding, mas também dos Buffalo Springfield e dos Led Zeppelin. A cadência das edições seria regular ao longo da década, o seu talento uma evidência para os seus pares e, entre o público, tornar-se-ia figura de culto: um músico reconhecido mas resguardado dos holofotes do estrelato.

As letras cantadas numa voz que parecia realmente a meio caminho entre o tom nasalado de Dylan e a gravidade de Cash – envergonhava-se dela a início, mas passou a tolerá-la depois de o cancro na garganta a tornar mais crua e enrouquecida  foram fonte de inspiração para muitos outros. Joan Baez, Carly Simon, Everly Brothers, Carl Perkins, Bette Middler, Todd Snider e Bonnie Raitt são alguns entre os muitos que gravaram versões das canções de John Prine.

Em 1981, fundou a sua própria editora, a Oh Boy, e passou a dirigir os seus destinos através dessa pequena empresa familiar sedeada em Nashville. Ali editou todos os seus álbuns até aquele que foi recebido como um renascimento. The Tree of Forgiveness chegou em 2018 e terminava com uma canção intitulada When I get to heaven. Quando chegasse ao Céu, cantava, beberia um cocktail de vodka e ginger ale, fumaria um cigarro com cinco milhas de comprimento, beijaria uma mulher bonita. Abraçaria o pai e a mãe, o irmão e o primo e as tias. Iria meter-se no show-business outra vez e começar uma banda rock’n’roll. Agora que lá chegou, mal podemos esperar pelas novas canções. Não faltará por ali matéria para John Prine. 

Com Inês Nadais

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