Uma volta no carrossel

Ocorre-me que nunca mais ouvimos a música do camião recolhendo o lixo de madrugada. Como seria tranquilizador ouvi-lo agora, deitadas na cama.

Foto
Annie Spratt/Unsplash

Adormeci um bocado no sofá e agora, insónia. Tem acontecido. Acordei no sofá e estava a sonhar contigo, connosco. Era o fim do mundo à beira-mar e as pessoas sabiam. O mar era negro, com ondas pretas. As pessoas andavam agitadas aos pares e em trios, mas a sorrir, entre as rochas escuras à beira-mar. E havia um carrossel. Trabalhavas lá. Eras uma das traves do carrossel, daquelas que se movimentam para cima e para baixo e que costumam ter cavalinhos. Não havia cavalos, só as traves, e tu eras uma delas. Levavas as pessoas ao colo para uma volta. Entrei no carrossel e calhou-me o teu colo, não nos conhecíamos. Disseste: “Agora já não sais daqui, não levo mais ninguém.” E eu, no sonho, fiquei feliz, apaixonada por ti. Senti isso. E permanecemos ali às voltas, para cima e para baixo, sem falar, abraçadas no teu colo a ver as rochas e o mar com ondas, tudo negro, ao som de música de carrossel.

Escrevi-te a meio da noite para te contar isto. Passava das quatro da madrugada. Uma mensagem longa. Desejei que não tivesses som no telefone, não te queria incomodar. Mas, ao mesmo tempo, queria que me lesses. Tinha esperança de que não tardasses na resposta. A insónia só existe se desacompanhada. Assim, perante a tua réplica, estaria acordada e não insone. Queria que visses o que eu vi durante o sono, nunca tinha imaginado nada assim.

Ondas negras.

Carrossel numa enseada de rochas pretas.

Pessoas aos pares e em trios.

Humanos alegres à espera do fim.

Que calma.

Sei que entendes o que vi, só tu entendes bem. Mandaste-me uma música de carrossel, numa versão de órgão da Wurlitzer, pouco passava das seis da madrugada. Tinha fé que ias ver e ouvir o que eu vi e ouvi. Assim foi.

Ocorre-me que nunca mais ouvimos a música do camião recolhendo o lixo de madrugada. Como seria tranquilizador ouvi-lo agora, deitadas na cama — o som familiar do bater de chapa e o pequeno guincho trocado entre os trabalhadores antes de voltarem a dar gás ao motor, afastando-se.

Sugerir correcção
Comentar