As coisas que nos vai dizendo a pandemia

Ouvi por estes dias que, depois de passada esta pandemia que está agora no auge, a globalização tal como a conhecemos não voltará a ser a mesma coisa. E isso é capaz de não ser mau — contando que não venha nada pior, pois os rearranjos dão por vezes produtos inusitados.

A situação que estamos a viver, com o confinamento caseiro e uma grande restrição à circulação, tornou-nos ainda mais dependentes das novas tecnologias de comunicação. Os que apregoavam os exageros  das redes sociais (mea culpa…) estão agora a usufruir delas para pôr as cabeças fora de casa; os que achavam que se falava demais à distância lançam mão das diversas ferramentas para o efeito; os resistentes, os que faziam alarde da sua diferença gabando-se de desprezo digital (o que é bem diferente de iliteracia digital), estão agora em estágio intensivo descobrindo as estradas do ciberespaço.

 Vemos agora os frutos das conquistas da era espacial, que a tantos pareceram um disparate megalómano da competição entre as duas superpotências da época. Não posso deixar de ficar espantado, a esta distância, com os estrategas da altura, que percebiam já como era preciso ir para o espaço para dominar na terra. E não posso deixar de me espantar como, século XXI já bem entrado, há ainda defensores de que a ida à lua foi uma farsa, continua a haver terraplanistas e bolsonaros. 

Voltemos ao ciberespaço, aos mundos virtuais e à mega-comunicação que abriram. A questão já não é a de estar a par. É a de conseguir um fio condutor pelo meio da profusão, como o que faríamos se quiséssemos progredir através da floresta virgem. Em algum momento teríamos de voltar para trás, guiados pela linha ténue mas precisa do fio. Voltar para o sítio das referências, para o lugar que conhecemos e que nos conhece. A questão não é estar a par, não é tudo saber ou alcançar. É saber que sabemos algo de seguro, que não se deixe diluir na torrente que arrasta.

O mundo multimédia, de notícias ao minuto e comentários que chegam mais rápido do que o pensamento, é torrencial. A questão não é a da hiperligação, mas a da ligação ao que somos. Deixamos de ser quando queremos ser sempre o que está adiante, deixamos de ser quando somos mais um numa rede de miríades de emissores. O essencial não está em ser emissor, mas em filtrar o que nos chega. E então sim emitir, mas a partir de si e não por reacção impulsiva ao que nos põem diante.

Ouvi por estes dias que, depois de passada esta pandemia que está agora no auge, a globalização tal como a conhecemos não voltará a ser a mesma coisa. E isso é capaz de não ser mau — contando que não venha nada pior, pois os rearranjos dão por vezes produtos inusitados. Muitas vezes já tinha dado por mim a pensar que se tratava de um processo imparável, de um rumo irreversível como o do objecto que se lança na queda livre. Os contemporâneos do império romano devem ter pensado o mesmo. As grandes tendências, as que têm uma magnitude que nenhum poder decide sozinho, só podem sofrer desvios de rota perante acontecimentos fora de cogitação, como agora a pandemia da covid-19.

Em abstracto sabíamos que podia acontecer. Esteve perto com a gripe das aves há uma década. Em abstracto sabíamos a pandemia, sabíamo-la duma memória antiga inscrita na nossa história colectiva. Ameaçou nos últimos tempos por várias vezes. Mas no concreto comportámo-nos como se nunca pudesse acontecer. Epidemia, desde o fundo dos tempos, rima com morte. E sabemos bem como não lidamos com a ideia da finitude numa cultura narcisista, agarrada ao hedonismo como a coisa mais urgente, fascinada com o culto da imagem, obstinada com a saúde e a fruição. Só acomodámos bem a morte enquanto ela se inscrevia como coisa natural – e de passagem para o sobrenatural - na vida comunitária, que era um organismo colectivo denso de relações e de suportes afectivos.

 Paradoxalmente, agora que nos mandam não sair de casa, estamos a reactivar alguns comportamentos comunitários que estavam em letargia desde os nossos avós. Não é isto indesligável do modo como o espectro da morte de repente pareceu mais forte do que as nossas tecnologias que garantem vida. De repente estamos a disputar ventiladores como noutras latitudes se disputa água. Unidos na condição de potenciais vítimas reactivamos o vínculo comunitário, capaz do reconhecimento do Outro em detrimento do próprio umbigo - eis um inventário a fazer nos próximos tempos pelos especialistas do comportamento e da sociedade. Precisamos de sustos para recobrarmos sensatez?

Afinal o impensável aconteceu. E a pandemia aí está diante de nós, fechando fronteiras, confinando e isolando, desacelerando brutalmente economias que pareciam estáveis e sólidas. O medo paira. Mario Draghi disse que estávamos perante algo de dimensões bíblicas. O cardeal patriarca, D. Manuel Clemente, disse que desde os tempos de Cristo que não assistia a nada desta magnitude (e logo corrigiu dizendo que também não podia ter assistido directamente, o que nós suspeitávamos mesmo que não o dissesse). E de todos os quadrantes, e pela boca de todos os responsáveis, chegam adjectivos pouco usuais para caracterizar esta situação quase onírica que se abateu sobre o planeta – sim, porque às vezes parece-nos que estamos no meio de um sonho. E pelo menos agora temos tempo para dormir, e quanto mais dormimos mais sonhamos – o que é um bom princípio de higiene psíquica. 

 Malária, cólera, ébola. Estávamos habituados às epidemias dos países pobres. Tudo coisas que não nos acontecem a nós, sofrimentos longe, geografias exóticas. E agora, atónitos, ouvimos nas notícias falar dos que pareciam a salvo de tragédias tão pré-modernas como as epidemias. Itália, Espanha. Mas — inimaginável ainda há poucos meses – Suíça e Países Baixos. E Nova Iorque, que gosta de exibir o catálogo de sítio mais pós-moderno do planeta. Este coronavírus é o primeiro microorganismo que penetra a fundo a epiderme tão de verniz da pós-modernidade. Talvez por isso não tenha ainda pegado em Portugal com tanta força… 

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