Libertação dos presos – um “humanismo” arriscado e descuidado

Importa sublinhar que uma avaliação de risco de reincidência tem de ser feita caso a caso e ter em conta factores de risco e factores de protecção, e não pode ser simplesmente feita com base em um único indicador, como o crime pelo qual está (actualmente) condenado.

A renovação da declaração de estado de emergência no dia 2 de Abril, por mais 15 dias, introduziu uma novidade em matéria de execução de penas privativas de liberdade, ao afirmar que podem ser tomadas medidas excepcionais e urgentes em matéria de execução da pena privativa da liberdade. Entre todas, foi provavelmente a medida mais polémica até agora, que ganhou corpo quando o Governo anunciou a forma como iria propor à Assembleia de República a sua execução. 

De acordo com o que tem sido noticiado, e relembro que tanto o Governo como o Presidente da República afirmaram mais do que uma vez que os números apresentados iriam sempre corresponder aos reais, entre os 12.729 reclusos existe apenas uma reclusa diagnosticada com covid-19, um guarda prisional e uma funcionária.

Perante isto, como poderá entender a comunidade que as medidas urgentes de protecção de um sistema semifechado passem pela libertação antecipada, pelo perdão, pelo indulto excepcional, por licenças de saídas administrativas de 45 dias ou até mesmo por uma antecipação da liberdade condicional dos reclusos? Como poderá a comunidade compreender e aceitar tais medidas, sem que antes sejam tomadas outras medidas de reorganização do trabalho prisional, desde alterações das escalas dos guardas até alterações dos mapas de actividades dos reclusos, aplicando a regra do trabalho em espelho que o Ministro da Administração Interna apresentou para as Forças de Segurança?

Importa frisar que o vírus não está dentro das cadeias, pelo que as primeiras orientações deveriam ser no sentido de evitar ao máximo que este entrasse. Colocadas em prática estas medidas, não se exclui a necessidade de aplicar outras, como a libertação de alguns reclusos com baixo risco de reincidência criminal, com capacidade de subsistência no exterior e com condições de saúde mais vulneráveis. Aqui importa sublinhar que uma avaliação de risco de reincidência tem de ser feita caso a caso e ter em conta factores de risco e factores de protecção, e não pode ser simplesmente feita com base em um único indicador, como o crime pelo qual está (actualmente) condenado.

Sem a avaliação destes factores, a libertação antecipada, baseada num juízo de prognose não estruturado, pode vir a ser uma roleta russa em matéria de reincidência criminal. Numa análise psico-jurídica das propostas do Governo, que se fundamentam na emergência pública ocasionada pela covid-19 e que visam minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas nos Estabelecimentos Prisionais, importa desde já afirmar que os critérios acima mencionados são imprescindíveis - a avaliação de risco de reincidência é ignorada, desde já quando não se exclui no acesso a estas medidas os reclusos reincidentes. Mas vejamos individualmente cada uma das quatro medidas anunciadas:

O perdão parcial de penas não exclui crimes como os de mutilação genital feminina ou crimes de ofensa à integridade física. Não contempla para a decisão aspectos essenciais, como por exemplo a história criminal e o comportamento durante a execução da pena. Comparada com a Lei da Amnistia, é bem mais branda na sua condição resolutiva.

O indulto excepcional, aplicável a recluso com 65 anos ou mais, não exclui nenhuma categoria de crime, e por si só a ideia não prediz um baixo risco de reincidência criminal.

A licença de saída administrativa extraordinária passa de ter no máximo 3 dias consecutivos para 45 dias. Uma decisão do Director Geral, sem qualquer intervenção do Tribunal de Execução de Penas. Um órgão administrativo assume competências de um órgão judicial na avaliação da segurança de todos nós? Onde fica a separação de poderes?

A adaptação à liberdade condicional é a única medida que mantêm no processo de execução da pena o Tribunal competente, permitindo uma antecipação de 6 meses na decisão de Liberdade condicional.

A Ministra da Justiça alega que estas medidas são elementares num Estado humanista - resta-me questionar onde ficam, na sua visão humanista da privação de liberdade, as crianças que estão com as suas mães nas celas, as reclusas grávidas e os jovens a cumprir medidas tutelares educativas? Para esses parece não haver medidas específicas, mas não serão esses os mais vulneráveis em situação de privação de liberdade? E as vítimas, como ficam se não for acautelada uma avaliação de risco de reincidência baseada num juízo de prognose cientificamente estruturado?

Esperemos que o humanismo anunciado não se limite e não seja determinado pela necessidade de diminuir a despesa do Estado e de mitigar o problema da sobrelotação dos estabelecimentos prisionais, a troco da segurança de todos nós, em especial das vítimas.

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