Lamentar os mortos e fazer o luto em tempos de pandemia

Tentamos falar pouco sobre a morte, como se ao fazê-lo nos tornássemos imortais. Na verdade, é necessário aceitar a existência da morte, embora doloroso.

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@petercalheiros

A morte faz parte da nossa existência e, segundo os especialistas, numa situação de luto é esperado respondermos com sentimentos como a tristeza, a raiva e a angústia, enquanto caminhamos até à sua aceitação e à transformação da relação.

A nossa cultura tem ainda uma relação com a morte onde prevalece a preferência de evitar o tema, sobretudo quando é antecipatório, ou seja, se estamos a conversar e alguém diz: “Quando eu morrer...” Estas tentativas de falar sobre a morte são, muitas vezes, seguidas de uma voz que pede silêncio ou para bater três vezes na madeira como se isso fosse inocular-nos contra a morte.

Tentamos falar pouco sobre a morte, como se ao fazê-lo nos tornássemos imortais. Na verdade, é necessário aceitar a existência da morte, embora doloroso, provavelmente porque assumir que alguém de quem gostamos muito e que nos ajuda a dar sentido à nossa vida vai desaparecer, não é mesmo fácil de compreender.

Desde que surgiu esta pandemia, a morte começou a ser falada e ouvida diariamente, infelizmente tão ligada a números ao ponto de tornar o tema quase vulgar, retirando-lhe o devido e merecido respeito. A covid-19 obriga-nos a morrer sozinhos e isso não só é difícil de aceitar como gera um sentimento de abandono, principalmente para quem tem de estar afastado.

Aceitar que o nosso pai, a nossa mãe, um irmão, um filho ou um amigo partiu e deixou em nós a dor de não termos feito mais — quando se trata da morte de quem amamos achamos sempre que fizemos pouco —, pode ser particularmente difícil neste quadro de pandemia.

Nos hospitais, temos de deixar os nossos familiares partirem sem nos despedirmos. No funeral acontece o mesmo, as normas das autoridades sanitárias são claras: o cadáver não deve estar vestido e deve estar no interior de um saco, em dupla embalagem impermeável, e em caixão fechado. De preferência, recorrer à cremação, embora não seja obrigatório fazê-lo. Isto significa que ninguém tem oportunidade de ver, pela última vez, o rosto daquela pessoa e despedir-se.

Para algumas pessoas isto não se revela difícil porque preferem lembrar a pessoa em vida, mas, para outras, provavelmente a maioria, sendo uma das funções do velório e do funeral a despedida do falecido, esta ausência consiste numa dificuldade que poderá ter implicações na aceitação da perda, porque esta despedida faria parte do início do seu processo de luto.

Outro aspecto que poderá trazer dificuldade na aceitação relaciona-se com a ausência de familiares e amigos no funeral. As directrizes que concernem aos familiares, dadas pelas autoridades de saúde para diminuir a probabilidade de contágio, referem, entre outras, que os funerais deverão decorrer preferencialmente apenas com os familiares mais próximos e que estes atendam às medidas de distanciamento social. Mas quem é que quer e consegue distanciamento social quando está perante a dor do desaparecimento de alguém que ama? Mais do que nunca, o abraço e o toque são tão necessários para acalmar os sentimentos que nos assolam neste momento. Contudo, este tipo de consolo não é possível. Estamos, pois, perante algo que nos pode levar ao limite, não só perdemos quem amamos, como não podemos ser consolados com um dos gestos mais calmantes que alguém pode receber: um abraço.

Não se pretende sugerir, de modo algum, que se quebrem regras e que se comecem a abraçar uns aos outros, infelizmente isso não seria sensato. Temos, sim, de ajudar quem está enlutado a aumentar a probabilidade de ter um luto normativo e substituir o abraço físico por uma forma de consolo igualmente calorosa que o toque no coração, com amor, e que transmita presença.

Para aquelas pessoas que são católicas e para as que sabem que a pessoa que morreu gostaria que o seu funeral tivesse a celebração de uma missa, a proibição da mesma pode aumentar a culpa de não fazer a vontade a quem faleceu.

A culpa é um sentimento que provavelmente vai aparecer em vários momentos, já assim é numa situação de luto fora da pandemia. Se há sentimento que tem poder dentro de nós é a culpa que, para algumas pessoas, será mais forte porque vão lembrar-se que estiveram pouco tempo com aquela pessoa e vão achar que fizeram pouco por ela. Sentimo-nos também culpados porque não estivemos nos seus momentos finais, mesmo sabendo que isso aconteceu por imposição da pandemia. Se há suspeita ou certeza de contágio ao falecido por uma pessoa que permanece bem de saúde, os sentimentos de culpa podem ser agravados.

Nunca foi tão difícil encarar a morte como agora, porque há um acontecimento súbito, há medo, não há tempo nem despedidas e há menos apoio emocional. Sentimo-nos mais vulneráveis, mais frágeis abrindo espaço maior ao isolamento. Corremos o risco de nos fecharmos mais, em parte, porque já temos a obrigação de estarmos fisicamente isolados, mas também porque a proibição das pessoas de participarem no funeral pode criar uma dificuldade acrescida de contacto.

Tudo o que foi até aqui dito torna-se ainda mais difícil de se lidar quando a perda que vivemos é súbita e precoce, como no caso de crianças, adolescentes ou jovens adultos. Estes casos tendem a gerar processos de luto naturalmente mais difíceis e que podem requerer apoio profissional, por potenciarem problemas psicológicos, como a depressão.

Se tiver passado por uma situação de luto recente, deixo algumas sugestões que podem ajudar a aliviar o seu sofrimento e a integrar a perda. Desde já, é importante que caso sinta que o sofrimento está a ser demais para si e que está a ter sintomas que dificultam o seu funcionamento diário procure ajuda de um profissional especializado em psicologia ou psiquiatria.

  • Procure o apoio de pessoas com quem possa falar, sejam familiares, amigos ou o padre da sua freguesia. O que importa é que confie nessas pessoas e que elas lhe tragam tranquilidade e sejam boas ouvintes.
  • Não reprima as suas emoções, mas aceite-as. É normal sentir tristeza, raiva, solidão, culpa, frustração e choro fácil. Deixe-se chorar e lamentar sempre que quiser, não é exagero nem vergonha. Aquilo que sente é legítimo numa situação de perda e falar não irá aumentar a tristeza, pelo contrário.
  • Encontre uma forma de homenagear a memória daquela pessoa que morreu, seja através de uma música, de uma fotografia ou de um momento de silêncio. Quando a pandemia passar, organize uma cerimónia para honrar a memória de quem faleceu.
  • Dê tempo a si próprio para lidar com o luto. As pessoas têm tempos e necessidades diferentes, respeite os seus.
  • Não se sinta culpado de não ter cumprido os desejos da pessoa que morreu. Na situação em que nos encontramos esta poderá ser uma inevitabilidade, não é culpa sua.
  • Ao fim de alguns dias, comece a envolver-se nas suas tarefas habituais, a cuidar de si e a voltar a fazer o que lhe dá prazer. Isto não significa que esqueceu a pessoa, apenas que está a iniciar uma relação diferente com ela, à distância.

Para quem conhece alguém que está de luto:

Tente não tornar o distanciamento social em distanciamento emocional. As redes de apoio destas pessoas devem funcionar e mostrar-se presentes. Recorra às tecnologias para contactar com os enlutados e prestar apoio. Envie mensagens pelas vias que sabe que a pessoa irá ler ou para as pessoas próximas que as possam fazer chegar. Neste momento um telefonema é essencial.

Não deixe de expressar os sentimentos ao enlutado e não pense que o irá incomodar; a ausência do seu telefonema poderá aumentar a distância e o sentimento de solidão daquela pessoa. Muitas vezes não sabemos o que dizer, mas o seu telefonema representa atenção para aquela pessoa e isso é sinónimo de carinho. Caso, ao falar com a pessoa, perceba um sofrimento tão perturbador que o deixa preocupado, sugira a procura de ajuda de um psicólogo ou fale com alguém próximo da pessoa enlutada para estar atento.

Caso estejamos a falar do luto numa criança, recomendo que leia este artigo

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