Portugal já sequenciou mais de 100 genomas do novo coronavírus

Para ter uma visão da evolução da pandemia em Portugal, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge pretende sequenciar 1500 genomas do SARS-CoV-2 de doentes no país em três meses.

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Célula apoptótica (a azul) infectada com partículas do vírus SARS-CoV-2 (a vermelho) Célula apoptótica (a azul) infectada com partículas do vírus SARS-CoV-2 (a vermelho) - NIAID

Pode dizer-se que a sequenciação dos genomas do novo coronavírus em Portugal vai de vento em popa. Ao todo, já se sequenciaram 101 genomas do novo coronavírus SARS-CoV-2 de casos em Portugal: 98 pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa) e três pelo Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC). Mas este número só nos dá umas “luzinhas” do que podemos vir a saber com este trabalho. Em três meses, no máximo, o Insa espera sequenciar cerca de 1500 genomas que representem cronológica e geograficamente a evolução da pandemia em Portugal. Também já é possível seguir este trabalho praticamente em tempo real num site criado por este instituto. 

A primeira sequenciação do genoma do SARS-CoV-2 foi anunciada e tornada pública pela primeira vez logo em Janeiro por cientistas da China. Conhecer o genoma do vírus permitiu que se criasse rapidamente um teste genético para se saber se uma pessoa está infectada. A amostra da primeira sequenciação veio de um homem com 41 anos que trabalhava num mercado em Wuhan, onde terá surgido o primeiro grande conjunto de casos de covid-19, de acordo com o jornal norte-americano The New York Times.

A informação genética do coronavírus vem da molécula de ARN – enquanto as quatro letras do ADN são A, G, C e T, o ARN tem um U em vez do T. Sabe-se que o seu genoma é uma sequência com quase 30 mil “letras” (o genoma humano tem três mil milhões de pares de letras). Simplificando, aquilo que o vírus faz é “sequestrar” células vivas para se replicar e espalhar. Quando o vírus encontra a célula adequada, injecta essa cadeia de ARN que contém o genoma. Neste caso encontrou as dos humanos. 

Em Portugal, o Insa já sequenciou e disponibilizou 98 genomas do SARS-CoV-2 obtidos de amostras colhidas ou recebidas pelo instituto e o IGC analisou outros três. Até ao final desta semana, o Insa espera chegar à sequenciação de cerca de 160. “Vamos a um ritmo bastante acelerado”, nota João Paulo Gomes, bioinformático e responsável do Núcleo de Bioinformática do Insa. Embora este conjunto de genomas já represente casos espalhados por Portugal continental e ilhas, aquilo que se pode concluir ainda é “muito precoce”: “Dá-nos apenas umas luzinhas do que está para vir.”

Por agora, já se identificaram algumas cadeias de transmissão, que representam grupos de pessoas relacionadas epidemiologicamente devido à propagação de um vírus com uma sequência do vírus idêntica. Também se percebeu que, eventualmente, a transmissão do vírus na comunidade pode ter começado antes do que as autoridades de saúde julgavam.

Viu-se ainda que há perfis genéticos dos genomas analisados concordantes com os dados epidemiológicos (vindos de inquéritos aos infectados sobre onde tinham estado ou contactado), mas também se observaram potenciais ligações epidemiológicas que não se conheciam. Isto é, verificou-se que pessoas infectadas no Norte, no Alentejo ou no Sul do país contactaram umas com as outras sem saberem e transmitiram o vírus umas às outras. “Como esta metodologia tem esta precisão, vemos casos aparentemente sem associação epidemiológica e com a mesma sequência do vírus tanto no Norte como no Sul do país”, nota João Paulo Gomes.

Portanto, está a começar a levantar-se o véu a cenários como este. “Mas, neste momento, apenas podemos concluir que é uma ferramenta muitíssimo poderosa e vai permitir-nos criar estes cenários de transmissão em saúde pública de uma forma fantástica.”

Pontos de entrada no país

Para se saber como evoluiu a pandemia em Portugal, nunca será necessário sequenciar o genoma do vírus de todos os casos positivos. Até porque isso seria redundante. Afinal, os genomas do vírus das transmissões entre familiares ou no trabalho serão semelhantes, não acrescentam muita informação e encaixam nas cadeias de transmissão já identificadas. Por exemplo, num lar com vários casos bastará analisar cerca de cinco genomas para se representar a situação. O objectivo é então sequenciar cerca de 1500 genomas em três meses, no máximo, com uma representatividade cronológica e geográfica da evolução do vírus no país.

Uma das questões que a equipa do Insa pretende chegar é: quantos pontos de entrada de infecção da covid-19 ocorreram em Portugal? A evolução da covid-19 em Portugal teve as fases de contenção (em que ainda existia livre circulação de pessoas, casos importados e novas cadeias de transmissão) e a de mitigação (em que, embora o contágio na comunidade seja mais descontrolado, já é pouco expectável que existam novos pontos de entrada devido ao confinamento das pessoas e da restrição na circulação e, por isso, a propagação deverá existir dentro e entre as cadeias de transmissão que já existem). Para se perceber exactamente quantas cadeias de transmissão se estabeleceram em Portugal e quantos pontos de entrada de infecção houve é muito importante sequenciar genomas até à fase de mitigação, aquela em que nos encontramos.

Neste momento, o Insa está a sequenciar tanto genomas das fases de contenção como de mitigação. Ainda se aguarda que muitos hospitais enviem amostras representativas das primeiras semanas do surto – o primeiro caso em Portugal foi anunciado a 2 de Março. A evolução da transmissão do vírus é montada como se fosse um puzzle: já se tem um conjunto de sequenciações tanto das primeiras como das últimas semanas e, à medida que se vai sequenciando amostras dos primeiros ou dos últimos dias, vão-se encaixando nesse conjunto. 

Para que se possa acompanhar a sequenciação do genoma do vírus em Portugal praticamente em tempo real, o Insa criou um site. Embora todos possam ir lá, esta ferramenta é sobretudo destinada a hospitais e à comunidade científica. Nela publica-se o número de genomas sequenciados, as principais conclusões sobre as mutações ou as cadeias de transmissão. “É precisamente esta partilha de informação que faz com que as pessoas se sintam motivadas a partilhar dados”, realça João Paulo Gomes.

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Site do Insa em que se pode ir acompanhando a sequenciação de genomas DR

Da preparação à investigação

E para que servirá toda a sequenciação? Primeiro, pode ser um contributo caso venha a acontecer um novo surto. Quando a curva epidémica começar a descer e houver um relaxamento das medidas de confinamento e restrição, é possível que aconteça um novo surto. Afinal, ainda não há uma imunidade de grupo considerável, porque muitas pessoas não contactaram com o vírus e ainda estão susceptíveis. “Temos de nos preparar para saber o que fazer atempadamente caso nos deparemos com esse cenário”, avisa o bioinformático.

Portanto, se se souber quantas cadeias realmente existiram, em que alturas apareceram, com que velocidade o vírus se espalhou pela comunidade e qual o peso das medidas no bloqueio de novas cadeias, pode-se construir um cenário rigoroso que permita dizer às autoridades e especialistas em saúde pública que a transmissão foi mais descontrolada do que se julgava. “Se viermos a ter um novo surto, isto pode ser uma indicação para que as medidas de confinamento sejam muito mais rápidas. Esta é talvez a ferramenta mais precisa.”

Pode ter ainda um contributo para a investigação clínica e a medicina. Entrando no nível da especulação (por enquanto), se se conseguir perceber que tipo de mutações aparecem no vírus e se conjugar isso com graus de severidade da doença, será uma ferramenta para este tipo de investigação e cuidados médicos.

Este estudo poderá ainda contribuir para o grau de variabilidade genética de antigénios (proteínas do vírus que induzem uma resposta do nosso sistema imunitário) do SARS-CoV-2 com possível impacto no desenvolvimento de vacinas, assim como para determinar o grau de variabilidade genética de proteínas do coronavírus que são alvos de fármacos antivirais, refere o Insa em comunicado. 

Para vir a ter este tipo de conhecimentos, os genomas de Portugal juntam-se a outros analisados por outras equipas. Até agora, há mais de 3000 genomas do SARS-CoV-2 de cerca de 60 países integrados só na plataforma bioinformática Nextstrain. “Portugal está na linha da frente. Estamos a um bom ritmo e as coisas estão a correr bastante bem”, reage João Paulo Gomes, dizendo que Portugal está entre os países que já disponibilizaram mais sequenciações.

Embora ainda se tenha pouca informação e seja difícil tirar conclusões, sabe-se que a disseminação do vírus na Europa terá acontecido sobretudo a partir de Itália, obviamente sempre com origem na China. Isto é, foram essencialmente casos italianos que se espalharam pelo continente europeu. Já nos Estados Unidos parece ter existido muito mais a entrada directa de casos com origem na China.

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Genomas do SARS-CoV-2 de cerca de 60 países na plataforma bioinformática Nextstrain DR

Quanto às mutações, estão a aparecer em todo o genoma do vírus e não estão concentradas em nenhuma região específica. Ainda não se sabe porquê. Também ainda não se percebeu se certas mutações do vírus fazem com que seja mais transmissível, virulento ou a origem de uma doença mais severa. “Estes balanços serão feitos com calma e com a reunião de dados clínicos, epidemiológicos e de sequenciação para que depois haja algo robusto e possa ser passível de alguma conclusão.”

Por agora, verificou-se que o SARS-CoV-2 tem uma taxa de mutações “muito mais reduzida” do que a dos vírus da gripe. Em média, este coronavírus tem cerca de duas mutações por mês desde o primeiro genoma sequenciado – estas alterações estão relacionadas com a mutação natural do vírus durante o processo infeccioso. Excepcionalmente, encontraram-se vírus com 20 mutações.

“Em Portugal temos uma grande dispersão: temos vírus que mutaram muito pouco e vírus que já mutaram consideravelmente”, refere João Paulo Gomes, adiantando que o máximo de mutações que se encontraram num genoma foram 12 e que há muitos com cinco e oito mutações, o que se enquadra dentro do previsto. Portanto, há alguma diversidade genética dos genomas dos casos em Portugal – ou seja, vírus muito diferentes a circular, o que ainda está por esclarecer –, pertencendo a maioria à linhagem mais representada em toda a Europa. “Estamos a observar o cenário que italianos, espanhóis ou irlandeses estão a observar também.”

O bioinformático destaca ainda que a maior parte dos casos que ocorreram na fase de arranque em Portugal estavam relacionados com casos importados, sobretudo de pessoas que vinham de Itália infectadas. Agora, um dos problemas já identificados é o de que, à medida que os casos positivos foram aumentando, tornou-se mais difícil recolher informação do historial de viagens ou de contactos dos infectados. 

Uma ferramenta poderosa

A sequenciação de genomas pode ser uma ferramenta tão poderosa que o Governo do Reino Unido atribuiu 20 milhões de libras (22,7 milhões de euros) a um consórcio para que analise como a covid-19 se espalha e se comporta através da sequenciação de todo o genoma do coronavírus. Entre as instituições desse consórcio estão o Instituto Wellcome Sanger, as do serviço nacional de saúde do Reino e as Agências Públicas de Saúde do Reino Unido.

João Paulo Gomes conta que em Portugal tem existido uma “óptima colaboração” dos hospitais de norte a sul do país para disponibilização das amostras. E já há outras equipas que querem sequenciar o genoma do vírus. Para este projecto, o Insa colabora com uma rede de cerca de 20 hospitais do país. Diferentes equipas do consórcio GenomePT (constituído por várias instituições científicas, incluindo o Insa e o IGC) estão a concorrer a projectos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e da Fundação la Caixa para sequenciar o genoma do vírus e o seu receptor humano (o ACE2). Depois pretendem partilhar os dados com comunidade científica para se extrair o máximo de conhecimento possível.

“[A sequenciação] serve para monitorizarmos a epidemia”, resume Manuel Santos, coordenador do GenomePT. “Como é difícil ter dados em tempo real, é importante para quem faz a gestão dos doentes e dos recursos ter dados científicos robustos na eventualidade de se detectar alguma alteração do comportamento do vírus, bem como para que haja uma gestão mais rigorosa das cadeias de transmissão onde isso acontece.” Entre as questões que pretende esclarecer estão: quantas são e quais as origens das estirpes que circulam em Portugal? Como se estão a espalhar pela população? Quais as diferenças entre elas? Desde que chegaram já adquiriram mutações?

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