Madeirenses cumprem quarentena em hotéis. “Sabia tão bem pelo menos uma poncha...”

Há três semanas que não aporta um navio de passageiros nos portos do arquipélago. Há sete dias que quem chega de avião é escoltado pela polícia até um hotel, para cumprir quarentena obrigatória.

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Ana Carolina com as duas irmãs adolescentes no quarto onde cumprem quarentena no Funchal DR

Quarentena, dia cinco.

São seis por três. Seis passos para o lado, três ao comprido. Passadas largas, entenda-se. Enérgicas, seguras. Medidas com a precisão possível de uma fita métrica imaginária. Contados a toda a largura do quarto, desde a parede que separa a casa-de-banho até à porta envidraçada que desemboca na varanda onde, todas as manhãs, se procura uma nesga de sol.

E depois outras três. Das costas da cama até à parede frontal, onde uma televisão, grande, está arrumada num daqueles móveis esguios e anónimos que povoam os quartos de hotel por esse mundo fora. Uma mistura de secretária com mesa de refeição, que percorre grande parte da parede.

[Está desarrumado. Dois, três livros. Uma montanha de apontamentos. Algumas revistas. A bandeja do almoço.]

Alguém, mais dado às matemáticas ou a outra qualquer ciência exacta, talvez resolvesse a questão com um racional 6x3=18. São 18 metros quadrados de quarto. Ponto. Outros, a quem as ciências sociais falassem mais alto, procurariam, quem sabe, ver o que guardam as paredes pintadas em tons quentes, tentando perceber que coisa é essa de quarentena, e o que ela faz a quem, sozinho, tem por mundo um quarto de hotel fechado.

Eduardo, que pede para não ser identificado por motivos laborais, já mediu o comprimento daquele quarto do Hotel Vila Galé Santa Cruz, uma das quatro unidades hoteleiras que o governo regional madeirense requisitou para isolar, durante duas semanas por causa da pandemia da covid-19, quem chega por estes dias ao arquipélago. Não por interesse matemático ou queda para a metafísica, mas para matar mais uns minutos de tempo. “Tenho livros para ler. Coisas para escrever. Televisão. Internet. Para já estou a aguentar-me”, diz ao telefone com o PÚBLICO.

É uma das 277 pessoas – números de sexta-feira, da Secretaria Regional da Saúde e Protecção Civil (SRSPC) – que estão a cumprir a quarentena obrigatória em hotéis na Madeira e no Porto Santo. No início, as regras eram apenas para quem não tinha domicílio fixo na região autónoma. Os residentes ficavam em isolamento profiláctico em casa. Depois, quando os turistas deixaram de chegar, alguns residentes furaram o isolamento e o número de casos começou a aumentar (52 positivos de covid-19, nas contas da Direcção-Geral da Saúde), as regras apertaram-se.

Uma ilha fechada

“A partir das zero horas de terça-feira, [determina-se a] redução do número de passageiros desembarcados nos aeroportos da Região Autónoma da Madeira no número máximo de 100 passageiros por semana, independentemente do número de companhias a operar, e todos os passageiros desembarcados cumprirão a quarentena obrigatória de 14 dias em unidade hoteleira”, disse, no último fim-de-semana, Miguel Albuquerque, o social-democrata que preside ao governo do arquipélago.

Antes, a 13 de Março, a Madeira tinha já fechado todos os portos e marinas a cruzeiros e embarcações de recreio. A medida, implementada ao mesmo tempo que se começava a controlar a temperatura de todos os que aterravam nos aeroportos regionais, foi recebida com estranha normalidade, não fossem estranhos os dias que correm. Numa ilha, o mar é tudo e nada. É muro alto, intransponível. Mas é também horizonte, e estrada para o mundo. Agora, está fechado.

Também o céu anda estranho. Os voos para a Madeira estão reduzidos aos mínimos. Por semana, só podem desembarcar uma centena de passageiros. Ana Carolina, 22 anos, há cinco no Reino Unido, tem feito vida em Gatwick. Trabalha no aeroporto e vive nas redondezas. A pandemia fê-la regressar à Madeira. Está no quarto número 2074 do Vila Galé Santa Cruz, ali mesmo ao lado do aeroporto.

“Estou habituada ao barulho dos aviões. Uma pessoa habitua-se, não é? Mas agora é tudo silencioso. Só um, dois aviões por dia”, conta ao PÚBLICO. Quando entrou no avião, já sabia ao que vinha. Duas semanas em isolamento num hotel. Catorze dias. Faltam oito. “No papel está escrito que a nossa saída é no dia 13 de Abril”, explica, com saudades de casa.

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Sónia Sousa, enfermeira no Reino Unido, regressou faz hoje uma semana com o namorado à Madeira

Ana Carolina fala no plural. O regresso à Madeira fez-se com a mãe e as duas irmãs adolescentes. Ficaram juntas, numa suite júnior. Dois quartos comunicantes por uma porta, sempre aberta para dar distância ao espaço. Jogam às cartas, vêem televisão, mergulham no telemóvel, vão passando os olhos no jornal regional que todas as manhãs é posto à porta do quarto.

“Quando está sol, de manhã, vamos à varanda.” É uma varanda bonita, dá para ver o mar e a promenade, agora deserta. “No outro dia vi que estavam a desinfectá-la. Os homens com máscaras e fato branco.” Dá para ver também a piscina do hotel, vedada, claro, àqueles hóspedes à força que não podem sair do quarto.

As refeições, três por dia, são colocadas à porta dos quartos por técnicos dos serviços regionais de saúde. Na Quinta do Lorde, um resort no extremo Este da ilha, a comida entregue às 96 pessoas a cumprir ali quarentena é assegurada por um serviço de catering. No Vila Galé (154 pessoas) é confeccionada na cozinha do hotel, tal como acontece no Praia Dourada (27), no Porto Santo. O governo madeirense requisitou também o Enotel Quinta do Sol, mas ainda não foi utilizado nesta fase.

Recriar a normalidade 

“A comida é boa. É carne ou peixe. Vem sempre sopa. As minhas irmãs é que reclamam, às vezes”, ri-se Ana Carolina. As refeições, o pequeno-almoço, o almoço e o jantar, são um dos “pontos altos” do dia – “batem à porta, e vamos ver o que trazem”. Os outros são os telefonemas diários do delegado de saúde e de uma psicóloga.

“O médico pergunta como estamos. Se temos sintomas. A psicóloga quer saber se está tudo bem. Se estamos a passar bem.” Quem fala agora é Sónia Sousa, 25 anos. Enfermeira no Reino Unido, regressou faz hoje uma semana com o namorado à Madeira. Estão os dois no Vila Galé. Os mesmos seis por três passos. O mesmo espaço de varanda. “Durante o dia, vamos fazendo as nossas coisas. Ele gosta de ver séries no computador. Eu vou vendo um pouco de televisão. À noite procuramos fazer qualquer coisa juntos. Ver TV ou uma série no portátil.”

Uma tentativa de recriar um pouco de normalidade. Em Inglaterra, era assim. Trabalhavam e encontravam-se ao final do dia. Agora vão esbarrando um no outro, o dia todo. Não se queixam. “Já sabia que tinha uma quarentena obrigatória, e acho bem que assim seja. A minha mãe é uma transplantada. É uma pessoa de risco.”

Para já, está tudo bem. Eduardo também não se queixa. “Comparado com o Reino Unido, isto aqui tem sido muito eficiente. Pessoas aglomeradas no aeroporto. Filas de pessoas sem distanciamento de segurança. Lá está um caos”, conta, dizendo que sim, que concorda com a quarentena.

Nem todos pensam o mesmo, e para eles está a PSP. “Todo este processo de encaminhamento das pessoas para os hotéis é acompanhado pelas forças de segurança, por isso, em caso de desobediência, as autoridades intervêm”, diz ao PÚBLICO fonte do gabinete do secretário regional da Saúde, Pedro Ramos.

Logo no avião, os passageiros recebem um inquérito para preencher, que depois entregam à chegada ao Funchal. Dados pessoais, local de origem, contactos potenciais mantidos com pessoas com covid-19, antecedentes clínicos. “Só na fila para o SEF é que foi um pouco confuso, mas depois foram cumpridos todos os distanciamentos”, diz Sónia Sousa. Depois tudo se desenvolve com calma. Entregam o inquérito, a temperatura é controlada e são encaminhados para os autocarros.

“O transporte [para os hotéis] é feito em autocarro, assegurando o distanciamento obrigatório no interior das viaturas. Este transporte é acompanhado pela PSP, com escolta”, explica a SRSPC, acrescentando que quem chega do Porto Santo (onde existem dois casos confirmados) no ferry, com automóvel próprio, também é escoltado pela PSP até à unidade hoteleira. “Em quarentena nos hotéis estão também pessoas que não tinham condições em casa para cumprir isolamento profiláctico com o necessário distanciamento social da família.”

À chegada ao hotel, são inquiridos sobre eventuais necessidades específicas de alimentação. Se são diabéticos, se têm alguma intolerância alimentar, se são vegetarianos ou se precisam de alguma medicação. Recebem um “kit de limpeza”, pois, durante a quarentena, serão responsáveis pela limpeza do quarto, e indicações para não saírem, em nenhum momento, daquele espaço.

Nos hotéis designados, existe uma equipa de psicólogos a acompanhar diariamente, e uma dupla de médico e enfermeiro permanente. Há também um nutricionista e pessoal administrativo.

Familiares autorizados podem deixar comida ou outros bens na recepção do hotel, que são vistoriados antes de serem entregues. “Não deixam entrar álcool. E sabia tão bem pelo menos uma poncha...”, diz Sónia Sousa, a rir. Mas a sério.

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