Na sala de audiências com o WhatsApp

Novas tecnologias têm sido um auxiliar precioso para realizar julgamentos urgentes em tempos de pandemia.

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Só os julgamentos de casos urgentes continuam a realizar-se Nelson Garrido

A juíza passa o telemóvel por cima de um documento que quer mostrar à testemunha, como se estivesse a usar um scanner: “Consegue ler?” Do lado de lá da chamada de vídeo feita pelo WhatsApp, o contabilista que está a ser inquirido queixa-se de que o papel lhe aparece de pernas para o ar. “O senhor é que deve estar com o telefone ao contrário”, explica-lhe a magistrada.

As novas tecnologias têm sido um precioso auxílio nos poucos julgamentos que ainda vão tendo lugar nos tribunais portugueses. O motivo de se realizarem em tempos de pandemia relaciona-se com questões de urgência, como por exemplo envolverem menores – não é o caso —, ou haver arguidos presos. Na última quinta-feira, na maior sala de audiências do Campus da Justiça, em Lisboa — aquela que tem sido usada para o processo de instrução da Operação Marquês —, continuaram a ser julgados cinco homens de nacionalidade romena e brasileira, todos acusados de terem montado uma megaburla internacional assente no investimento de gente crédula em criptomoeda. Mas, ao contrário do que é habitual, apenas um dos cinco se senta no banco dos réus, e de máscara protectora posta. Dois dos arguidos assistem ao julgamento a partir da cadeia, por videoconferência, sentados lado a lado — aqui também nada de distanciamento social —, enquanto as testemunhas são inquiridas pelo WhatsApp. A pandemia a isso obriga. Os dois arguidos que restam e que estão com Termo de Identidade e Residência vivem no Porto e foram dispensados de comparecer à audiência.

Não que a sala esteja vazia: além de três juízas e da procuradora, cujas bancadas nem sequer respeitam grande distância social, espalham-se ainda pela sala três advogados, dois polícias e uma tradutora, num total de uma dúzia de pessoas.

Assim que começam os trabalhos, o funcionário judicial presente distribui gel desinfectante pelas magistradas. Ninguém usa máscara senão o arguido presente, mas o ritual de besuntar as mãos há-de repetir-se mais vezes, até porque cada magistrada levou o seu próprio frasquinho. Chega a altura de interrogar a mulher de um dos suspeitos, também via WhastApp. “Olhe, a senhora está ao contrário. Tem de virar o telemóvel”, avisa-a a juíza. A sala de audiências está em silêncio, e ouve-se perfeitamente a testemunha a tossir várias vezes através da ligação.

As autoridades calculam que pelas mãos deste grupo criminoso e de cúmplices seus que ainda não foram apanhados terão passado cerca de cem milhões de euros. Como isco criavam sites destinados a investimentos financeiros, nomeadamente em criptomoeda, seleccionando depois entre as potenciais vítimas que com eles entravam em contacto aquelas que lhes pareciam mais promissoras. E acenavam-lhes com ganhos avultados, através de aplicações seguras e sem riscos. Para lhes ganharem a confiança, chegavam a entregar-lhes lucros, por forma a convencê-las a fazerem novos e mais vultuosos investimentos. Houve quem perdesse as poupanças de toda uma vida.

As contingências da covid-19 podem criar uma ou outra dificuldade momentânea, mas não são suficientes para emperrar o julgamento, que é interrompido apenas para almoço. As dezenas de restaurantes em redor do Campus estão agora fechados na sua maioria, mas as juízas preveniram-se e trouxeram marmita. 

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