O Reino Unido e o regresso à imunidade de grupo (de onde, aliás, nunca saiu)

Sem testes, com um primeiro-ministro doente e uma política baseada na sobrevivência da economia, esquecendo que sem pessoas não há economia, o Reino Unido cairá estrondosamente no chão para rapidamente se comparar a Itália e Espanha no número de casos e perda de vida humanas.

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LUSA/WILL OLIVER

O cenário é, no mínimo caricato: um parque de estacionamento pertença de um parque de diversões como centro de testes para determinar se uma pessoa está, ou não, infectada com o novo coronavírus. Os automóveis fazem fila enquanto enfermeiras varridas pelo vento tentam acertar com a zaragatoa no nariz dos passageiros. Às vezes não acertam.

Poder-se-ia dizer estarmos num país em vias de desenvolvimento onde a falta de hospitais e recursos humanos leva a medidas criativas, para não dizer desesperadas. Mas não, estamos no Reino Unido, supostamente um dos sete países mais ricos do mundo, onde, até à presente data, a postura do Governo foi uma: proteger a economia, apoiar empresas, estabelecer linhas de crédito, resgatar empreendimentos, libertar fundos de emergência, injectar capitais, assim demonstrando aos congéneres comerciais a robustez económica de um país no meio da maior crise mundial desde a Segunda Guerra Mundial.

À boa maneira britânica, é urgente passar a imagem de que está tudo bem. Se não testarmos, os números não aumentam. É simples. E simples seria se as pessoas não morressem. Assim se explica a total incapacidade, para não dizer desinteresse, para testar quem está e não está doente de modo a controlar a disseminação do vírus e, verdadeiramente, salvar vidas.

Tal incapacidade é também o resultado de uma política assente desde logo na imunidade de grupo, apregoada nos idos de Março, como a resposta para o presente problema. Como o grupo vai ficar imune, não é preciso testar; e se não é preciso testar, também não é preciso estar na linha da frente da produção e/ou encomenda de reagentes, linhas de fabrico, contratação de profissionais, construção de laboratórios.

Este é o reflexo de uma classe dominante pouco ou nada preocupada com as vidas reais de quem agora perde os seus, insistentemente ignorando os avisos da Organização Mundial de Saúde para testar, testar, testar, enquanto mete as mãos aos bolsos para se assegurar de que o dinheiro ainda lá está. Mas, e até prova em contrário, não se pode comer dinheiro. 

Sem testar quem está, ou não, doente, sem testar todos os casos suspeitos, não há outra opção senão mandar para casa de quarentena quem tenha o azar de espirrar ou tossir, assim paralisando todo um país por tempo indeterminado. 

Sem testar, testar, testar, estamos a combater um inimigo às cegas e sob risco de, em breve, não termos profissionais de saúde suficientes nos hospitais, também eles de quarentena, para tratar quem já está em estado crítico. Ao ignorar este princípio básico de combate a uma epidemia, os governantes do país de Sua Majestade esqueceram-se do grande número de casos críticos já existentes noutros países, assim condenando 66 milhões de almas à sua própria sorte.

O resultado está à vista: até 1 de Abril, os testes diários não ultrapassaram a fasquia dos 10.000, caminhando-se agora, em esforço, para os 15.000. Enfermeiros e médicos têm de implorar para ser testados e de dia para dia sobe o número de vidas perdidas, neste momento na casa das seis centenas a cada 24 horas e com tendência para subir.

Encostados à parede pelos números e concomitante sofrimento de quem perde os seus sempre demasiado cedo, o Governo britânico promete mundos e fundos, ergo 100.000 testes por dia até ao fim de Abril, sabendo de antemão estar no fim da fila a nível internacional para a aquisição de todo o equipamento e reagentes necessários a tão hercúlea tarefa. 

Correndo atrás da própria cauda, e sem solução à vista, fontes governamentais vêm agora sugerir o regresso à imunidade de grupo como a única saída para esta crise. De outro modo, dizem as mesmas fontes, não será possível salvar a economia. Sem solução à vista, ironia do destino ou não, o primeiro-ministro, e consigo outros dois ministros, já deram o exemplo ao contraírem o novo coronavírus e tudo estaria bem não tivesse Johnson de requerer internamento hospitalar para “testes de rotina”.

Mas, sejamos francos, o internamento é uma má notícia e sinal do agravamento do estado de saúde de quem nunca se coibiu de cumprimentar tudo e todos com um aperto de mão apesar do repetido aviso das autoridades de saúde para não proceder de tal modo. Basta lavar as mãos com mais frequência, disse à data o Ministro da Saúde, ele também vítima de doença semanas mais tarde. 

E como o internamento só acontece no caso de agravamento dos sintomas, onde se incluem grande dificuldade respiratória, perda de consciência, tosse com sangue, lábios e pele cianosados, não posso deixar de me preocupar com o estado de saúde de mais uma vítima desta terrível doença, indiferente a classes sociais e transversal à sociedade. 

Sem testes, com um primeiro-ministro doente e uma política baseada na sobrevivência da economia, esquecendo que sem pessoas não há economia, ao melhor estilo de um castelo de cartas o Reino Unido cairá estrondosamente no chão para rapidamente se comparar a Itália e Espanha no número de casos e perda de vida humanas. 

Reconhecer a existência de um problema é sempre o primeiro passo para a cura e enquanto a classe capitalista ao leme deste navio não se convencer da importância de salvar pessoas ao invés da economia, o destino será um e um só: o fundo do mar para fazer companhia ao Titanic.

Foram actualizados os números relativos aos testes.

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