Desvios e considerações sobre o covid-19

Será, então, para o paraíso que caminhamos com este fait divers que o vírus nos está a oferecer? Que mudanças admitimos serem temporais e quais serão as definitivas que irão alterar para sempre os nossos comportamentos?

O nosso conhecimento sobre a doença evolui numa realidade de contornos incertos, originando comportamentos disruptivos, emoções disfuncionais, medos alicerçados em perigos gerados no pensamento.

Se o aspecto sanitário é a primeira preocupação, a sobrevivência que se segue, económica e social, irá ocupar um segundo andamento longo e preocupante, num país varejado por uma recessão brutal. Será uma história nova, original, com ensaios passados de má memória.

A doença é o primeiro capítulo, um pequeno vírus o actor, uma novela desconhecida na abordagem, na apreciação e nas consequências. Prende este actor uma maioria na plateia em velocidade estonteante, contudo, refreando a voragem das consequências, para que a representação possa ser suficientemente devastadora. É, assim, uma ameaça ao ralenti, incutindo medo e incerteza superior à que seria uma passagem rápida circunscrita no tempo.

O medo, que pretende ser uma forma de segurança, chega antes da infecção, cresce em veredas sem luz, amochilando todos os perigos que passeiam no pensamento.

Aproveitando o tempo do confinamento, mudar deve fazer parte do nosso destino e da nossa vontade. Aguardar pachorrentamente o tempo incerto que nos separa do próximo capítulo, seria uma versão da flor envelhecida, perdendo pétala a pétala

Vários podem ser os caminhos da mudança, alguns à boleia do estado de emergência, que veio de quinze dias, promete ficar mais tempo. Reinventou-se o e-learning, o teletrabalho, as reuniões por teleconferência, as profissionais e as de família, jantares online, paixões que a distância não deve arrefecer. Os beijos e abraços são passados que apreciávamos, esperando não ter no futuro qualquer contrafacção. Muitos pais interrogam-se, pela primeira vez, o que fazer às crianças que têm em casa, os e as amantes são lançados no desemprego, a natalidade irá aumentar em pujança e assertividade, evitando surpresas com paternidades duvidosas. Assim, aperfeiçoaremos competência, generosidade e confiança, por certo fortaleceremos o conceito de família, uma nova aventura por estarmos juntos, dias após dias, um programa ensaiado mas poucas vezes experimentado. Teremos tempo para a criatividade com um propósito, a inovação, aquilo que até agora muitos evitavam, habituados à rotina e à preguiça.

Será, então, para o paraíso que caminhamos com este fait divers que o vírus nos está a oferecer?

Por certo não, os escolhos vão ser grandes, o tecido social corre riscos de ficar em frangalhos, o desemprego aumentará para números preocupantes, os impostos esticarão a corda, os salários poderão encolher. A inovação convém não seguir caminho tortuoso, sobretudo se continuarmos a gostar da democracia como um bem da nossa vida. Muitas serão as determinações que implicam sacrifícios, que serão para cumprir, nem que seja de forma autoritária, passando a estreita viela a diferença entre autoritarismo e democracia. Assistimos, descansados, às actuais detenções por desobediência no âmbito do estado de emergência. Será bom não lhe tomar o gosto, aumentando a abrangência, confinando a liberdade

Será possível que a liberdade seja amiga da segurança? Sendo a liberdade a capacidade de agir de acordo com vontade própria, a abrangência é enorme, desde que não colida com os direitos dos outros. Também a independência e a espontaneidade não estão em causa, mesmo quando a liberdade tem limites impostos, por ser condicional ou provisória. Importante é a independência do direito em relação ao poder político, pedra de toque importante para definir o regime. Daí virá a segurança que acasala bem com a liberdade, desde que a missão do direito seja justa, sem mácula, sem pronúncia de favores.

São estas algumas considerações que a covid-19 proporciona. Muitas são as interrogações sobre o futuro no mercado do trabalho e no bem-estar social. Quanto mais tempo durar o confinamento sanitário maior será o impacto económico e social, obrigando à toma de decisões na comparação de dois vectores que o passar do tempo obrigará à divergência.

Novas mentalidades, promoção de estilos de vida saudável, cooperação em rede na saúde, trabalho multidisciplinar em parceria, serão propostas que uma sociedade restaurada no humanismo deverá prosseguir. Do Governo, espera-se que promova a produtividade, crie modelos de negócio flexível, estimule a transparência e a meritocracia, ajuste impostos e tributações ao tecido social, sem ambiguidades ou dúvidas de semântica. Um olhar para o SNS é mandatório, apoucá-lo no baú das cativações tem consequências bem à vista. É necessário preservá-lo na componente humana, nos custos, na eficiência e organização. Os salários têm de ser repensados, convidando ao emprego único, forma que permitirá associar à assistência a investigação e a aprendizagem continuada. Defendo hospitais universitários onde cognição e destreza prática possam ser mais-valias diárias dos profissionais de saúde, única forma de preparar com tempo e eficiência recursos humanos que estejam aptos para trabalhar em situações semelhantes à actual. Hoje vemos que não basta comprar ventiladores quando não temos profissionais preparados em quantidade suficiente para lhes dar uso.

Da comunicação social devemos esperar assertividade, pesquisa realística e acompanhamento harmónico da sociedade. Não parece credível ser esse o caminho que vínhamos a percorrer, confrontados como éramos com uma trituração diária de politólogos desportivos ocupando vários canais televisivos em simultâneo.

Um reparo final para uma União Europeia que persiste na altivez de separar povos do norte dos povos do sul. Hoje vivemos uma pandemia que é transversal a todos, dizima vidas, famílias, empregos e bem-estar, presente e futuro. Exige-se sustentabilidade partilhada, junção de esforços e solidariedade. Só assim podemos aspirar a um acréscimo de humanismo, partilha de prosperidade e respeito mútuo

Acabo como comecei, com a covid-19, o vírus que desfez em cacos a nossa vida diária, criando ondas enormes de preia-mar. Que mudanças admitimos serem temporais e quais serão as definitivas que irão alterar para sempre os nossos comportamentos?

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