Não queremos voltar à normalidade

Voltar à normalidade. É a frase que todos repetem. Mas a que normalidade? A dos pequenos rituais quotidianos ou a que arruinou sistemas de saúde, de habitação, de segurança social e o ambiente?

Voltar à normalidade. É a frase destes dias. Há desejo de que o quotidiano volte ao que era. Mas também têm surgido vozes a proclamar que regressar à normalidade nem pensar, se por isso estivermos a nomear décadas que arruinaram sistemas de saúde, de habitação, segurança social e o ambiente, colocando-se o lucro privado à frente do bem-estar das comunidades e do planeta.

Vivemos tempos simultâneos. Por um lado, a resposta imediata e a tragédia, com famílias enlutadas que nem conseguem enterrar os mortos, e um número incalculável de pessoas que se confronta com o desemprego. E por outro, reflectir o futuro imediato, para que não voltemos ao que nos trouxe aqui e conjecturar outros rumos.

O que está a acontecer não tem nenhuma virtude. Mas também não é um castigo divino da natureza, ou uma guerra, como o poder político nos faz crer, quando o momento deveria ser o de afirmar a semântica da empatia, da solidariedade, dos cuidados, do conhecimento e da cooperação, tanto micro-local como global. 

Esta é uma crise sanitária excepcional, resultante de uma pandemia que se deseja conjuntural, que expôs insuficiências estruturais ao nível do sistema de saúde, e não só, e que terá consequências nas mais diversas extensões da nossa existência.

Nesse sentido, voltar ao normal, não é opção. Não é suficiente olhar a pandemia como acidente, sem tirar daí consequências. Até agora temos enfrentado com urgência o vírus. Mas também há uma expiação colectiva que nos leva a erigir heróis (médicos e enfermeiros, ou quem propõe lógicas sacrificiais por bem-intencionadas que sejam, como Ramalho Eanes, ou Suzanne Hoylaerts, a belga de 90 anos que morreu depois de ceder um ventilador) e que nos abstrai.

Nesse movimento acabamos por não interrogar o que se passa de errado com o nosso sistema para estarmos tão impreparados para a catástrofe, apesar dos avisos dos cientistas, os mesmos a quem pedimos uma vacina e de quem tantas vezes dizemos que se limitam a viver à conta do Estado. E quem diz cientistas diz artistas, os mesmos que na quarentena nos nutrem o espírito e o sentido de comunidade. 

E quem diz estas actividades diz outras, tantas vezes menosprezadas, que providenciam a assistência, a comunicação, a informação, a administração e o pensamento. Será que aquilo que valorizamos como coragem individual, por mais abnegados que os profissionais da saúde possam ser, não é afinal sintoma da falência de um sistema que deixa os mais desprotegidos morrer, porque preferiu salvar bancos em vez de hospitais? Que optou por premiar líderes que levaram empresas à falência, em vez de dar condições dignas aos profissionais de saúde, e a outros, que hoje se revelam essenciais, cuja única opção há anos foi rumar ao estrangeiro?

De que normalidade falamos? Uma onde as vítimas são aplaudidas como heróis, depois de gestos sacrificiais, perante um sistema que prefere esquecer os vulneráveis para engordar o capital financeiro? O vírus mata, mas também políticas de saúde adiadas. Queremos voltar às lógicas que nos últimos anos desvalorizaram o trabalho, tratando-o como custo? Ou viver apenas do turismo, sem diversificação de vectores de desenvolvimento, continuando a acreditar na miragem do crescimento económico permanente?

O momento que estamos a viver tanto pode resultar em mais austeridade, autoritarismo e quanto menos democracia melhor (não é isso que agrega China, EUA, Brasil, Rússia ou Hungria, para lá das diferenças?), ou construir um espaço onde a democracia seja compatível com o máximo de equidade social, política, cultural e económica. O que está a acontecer não exige apenas reacção. Exige também agir de forma que abra espaço para a mudança. Não se fará tudo de uma vez. Mas outra normalidade é precisa.

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