O fim da quarentena nas insolvências e recuperação de empresas

Com a alteração aprovada quinta-feira na Assembleia da República, o legislador relança estas ferramentas fundamentais para que o tecido empresarial e a própria economia se regenerem.

Desde o início da pandemia, mais concretamente desde 9 de Março, que as insolvências e os processos Especiais de Revitalização têm estado em quarentena. Num primeiro momento, por força do justo impedimento a que se aludia no artigo 14 do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 e, num segundo momento, por força da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março. Tudo isso acabou e ainda bem.

Os prazos deixaram de estar suspensos na sequência de aprovação de novo diploma na quinta-feira pela Assembleia da República.

Em termos conceptuais, admito que possa fazer sentido discutir se, no cenário atual, não seria adequado suspender os processos de insolvência em curso e impedir a apresentação de novos processos. Assim de repente, e a favor da paragem, poderia lançar-se que a finalidade natural e mais imediata da insolvência –​ a liquidação da empresa com venda de ativos e distribuição de bens pelos credores – seja impossibilitada tendo em conta um mercado parado em que ninguém supostamente anda às compras.

Porém, a verdade é que nem o procedimento de insolvência se esgota necessariamente na venda de ativos nem é verdade que num mercado em crise – mesmo com características tão peculiares como as desta – não se comprem ativos. Bem pelo contrário. Acresce que os mecanismos de insolvência e expedientes como os PER e afins constituem instrumentos de enorme valia para a rápida reestruturação do tecido empresarial. Isto para não falar em processos parados em que há dinheiro para distribuir aos credores, agora certamente ainda mais necessitados.

Ora, anteontem, porém, foi dado um passo muito significativo para o fim dessa paragem e, a meu ver, bem. Foram alterados os artigos 7.º e 8.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que, sem grande sucesso do ponto de vista da clareza, pretendiam definir quais os processos que, por força da situação de pandemia em curso, estavam suspensos e quais os que não estavam.

Com esta alteração, o legislador relança estas ferramentas fundamentais para que o tecido empresarial e a própria economia se regenerem. Até porque, convenhamos, o pacote de incentivos financeiros e económicos apresentados não poderá resolver tudo. Nem tal é suposto, na verdade.

Não estão, pois, genericamente suspensos os processos urgentes, em que se incluem, naturalmente, as insolvências e os PER. No caso de diligências em que devam estar as partes, mandatários e eventualmente testemunhas, as mesmas serão realizadas com recurso à utilização de meios de comunicação à distância, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente. Apenas se tal não for possível se admitirá a suspensão. Da diligência em concreto. Não necessariamente do processo. Isso parece ficar claro.

Estimo, mas tenho sobretudo esperança, que sejam poucos os casos em que tal não seja possível. É verdade que o reatamento das insolvências e PER em tempo de pandemia – bem como, aliás, de outros processos – evidenciará algumas dificuldades de apetrechamento técnico dos funcionários, mas as mesmas podem e devem ser resolvidas. O custo de não o fazer seria muitíssimo mais elevado. Tudo o mais já hoje em dia se faz online.

Acresce que quem anda nos tribunais já se deu conta das inúmeras vezes em que facilmente se substituiu o sistema de videoconferência dos tribunais – tantas vezes inoperacional – por meios alternativos tão simples como o Skype. Recordo-me até de um caso em que inquiri por essa via uma testemunha que se encontrava no México. Tudo correu sem problemas graças à estreita colaboração das partes e do tribunal e bem assim à determinação e agilidade do juiz titular do processo.

A este propósito, e dos obstáculos que surgirão em cada caso, admito que nos tempos vindouros, o princípio da cooperação e boa-fé processuais – que impõe ao tribunal, aos mandatários e às partes um dever de cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição dos litígios – e, bem assim, o princípio da adequação formal – admitindo aos juízes uma perspetiva crítica das regras processuais em ordem a que o rito processual assegure da melhor forma o direito substantivo – venham a ter todos um novo sentido e até protagonismo.

Dito isto, se o primeiro passo está dado, sendo hoje inequivocamente possível avançar com processos desta natureza, convém estarmos atentos e olhar para a substância os regimes do PER e da Insolvência, adaptando-os da melhor forma aos novos tempos. Mesmo para lá da covid.

Importa adaptar as suas regras e procedimentos à lógica da distância. Não é complicado nem moroso e tende a poupar recursos. Refiro-me a coisas tão simples como as formalidades das notificações ou a disponibilização da consulta de documentos.

A par disso, e antecipando os tempos que aí vêm, vale mesmo a pena reponderar o alargamento do privilégio creditório mobiliário geral até aqui admitido, na prática, apenas para a banca e, bem assim, introduzir como elemento de diferenciação específica entre credores o peso relativo dos mesmos na atividade e na recuperação futura da empresa, já que a jurisprudência tem sido restritiva neste domínio.

Em suma, neste momento parece indiscutível que se pode e deve continuar a lançar mão dos regimes da Insolvência, PER e congéneres. Por parte das partes e administradores judiciais espera-se uma ainda maior consciência de que este novo tempo exige absoluta seriedade, maior cooperação, máxima abertura e até criatividade na busca de soluções agregadoras de valor. Por parte dos juízes espera-se a agilidade e juízo crítico. Por parte do Estado espera-se que, ouvindo sempre quem está no terreno, proceda às alterações necessárias.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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