Carta de um confinado parisiense

Queríamos destruir o vínculo natural entre os seres humanos e aqui estamos em prisão domiciliária para nos lembrar da preciosidade da vida comunitária.

Passaram-se duas semanas desde que o país onde vivo, a França, está confinado devido à pandemia que surgiu em Dezembro passado na região de Wuhan, na China, que já matou mais de 50.000 pessoas no mundo e contra a qual nenhum dos cientistas mais reputados conseguiu até agora encontrar a fórmula mágica para a combater. Mais de metade dos habitantes da Terra é agora forçada a ficar em casa e, apesar da implementação de medidas de confinamento mais ou menos drásticas nos cinco continentes, a epidemia continua a fazer estragos. Os governos estão a reagir imperfeitamente contra este vírus desconhecido, o que nos diz que nem a medicina nem a política são ciências exactas. Portanto, devemos ter humildade antes de julgar: políticos e médicos estão numa situação difícil e não têm todas as informações ou mesmo todos os meios de que precisariam para agir convenientemente.

A rotina diária do meu mundo faz-me falta, não posso negar. Mas, desde o início do confinamento, surpreendo-me todos os dias descobrindo outras formas de viver. Embora sinta falta até das pequenas coisas que costumava desleixar, das vozes e dos corpos aos quais estava acostumado, o sentimento mais pronunciado em mim não é o da saudade do passado. É o sentimento de urgência que prevalece neste momento. Através de lembranças veiculadas na minha mente pelos rostos das pessoas com quem me cruzava na minha rua, pelo 9.° arrondissement de Paris, no supermercado, no metro, nas lindas praças da “capital do amor” e na vida mundana parisiense, o sentimento de urgência é claramente predominante. Penso cada vez mais no mendigo que sempre se vem sentar num canto da entrada da estação do metro de Notre Dame de Lorette, com a mão estendida suja pela miséria humana, penso no velho solitário de rosto triste que sempre vagueia pelo Parc Monceau na mesma hora em que por lá passo, penso na bola de papel que cai no chão na rua e que não recolho, por falta de tempo, quando tento deitá-la no caixote de lixo.

Estamos em guerra”, afirmou o presidente Macron, lembremos. Desde o início da quarentena, e no meu espírito de guerra, tive tempo de pensar nas guerras que a humanidade enfrentou no passado – guerras civis, interestatais ou sanitárias – e notei que cada uma deixou a sua marca nas sociedades que atingiu e transformou. E as guerras para as quais o inimigo foi identificado como uma ameaça comum tiveram a capacidade de tornar os indivíduos mais cooperativos e altruístas. Hoje, toda a humanidade entrou em guerra contra a covid-19, e todos os grupos humanos, que geralmente defendem interesses intergrupais, agora têm um só inimigo externo, esse vírus. Então, também seremos transformados após a nossa guerra, como as sociedades que nos precederam foram. E como temos tempo para pensar, comecei a esboçar, a reunir, para o meu diário de confinamento, pedaços de ideias que podem representar essa mudança.

Dado que a terra hospitaleira que nos acolheu, antes de esgotá-la e estragá-la, está a recuperar os seus direitos violentamente, é óbvio que a sua brutalidade nos obriga a tomar consciência das incoerências no funcionamento do mundo que criámos. Pagamos hoje por causa da ganância de um mundo que faz com que o lucro máximo seja o seu motor, pagamos por causa do funcionamento do capitalismo financeirizado, que está entre as principais causas do aquecimento global e que hoje nem é capaz de fornecer máscaras para proteger as pessoas, pagamos por causa das deslocalizações de empresas em países com baixos salários e direitos sociais reduzidos. Queríamos destruir o vínculo natural entre os seres humanos e aqui estamos em prisão domiciliária para nos lembrar da preciosidade da vida comunitária. Queríamos criar um mundo de solidão em que tivéssemos que viver afogados em confinamento virtual, agora ficamos verdadeiramente sozinhos e reduzidos a existir, a falar um com o outro, a interagir apenas através de ecrãs. Eis o nosso mundo, inóspito e fechado! Se antes escolhíamos confinar-nos nas nossas vidas particulares e individualistas, hoje somos postos à prova para vivermos algo novo todos juntos para nos despertar. Vamos então viver essa experiência com dignidade, é um presente do universo que nos quer unir numa comunidade humana verdadeira, é a única vocação humana na Terra. Se fomos capazes de imaginar uma série de televisão, lançada em 2018 num canal coreano e disponível na Netflix desde Fevereiro de 2020 sob o título de My Secret Terrius, cenários que coincidem surpreendentemente com o que estamos a viver agora com o coronavírus, uma previsão no 53.º minuto do episódio 10, que legitimamente faz pensar numa conspiração, é que a imaginação humana é fértil o suficiente para criar um mundo melhor que este.

Tive tempo de revisitar durante o confinamento os escritos de humanistas como Pierre Rabhi. Este perito da agroecologia sabe lembrar a necessidade de cultivar e continuar tradições pacíficas que estão em harmonia com a terra. O seu pensamento incita a não cair no desperdício de recursos e a respeitar os equilíbrios devidos ao meio ambiente, para não fazer e passar pelo que estão a passar hoje os países que modelaram o seu sistema de criação de riqueza no interesse financeiro que esmaga seres humanos. Porque se eles não tivessem destruído o habitat natural do pangolim e dos morcegos, talvez não teríamos esse vírus contagioso cuja expansão vertiginosa ataca as nossas vias respiratórias. O capitalismo produtivista, que degradou os habitats dos animais e destruiu as barreiras biológicas protectoras dos seres humanos, é uma das causas da passagem de vírus de animais para seres humanos. Em relação a África, o continente que menos participou nessa destruição, parece que a covid-19 começou a matar os seus melhores filhos. Matou Manu Dibango. Matou Pape Diouf. Oxalá que os antepassados e os deuses continuem a proteger a terra africana contra a grande propagação dessa doença – é o continente menos bem equipado para esta guerra e já sofreu calamidades inimagináveis.

Estamos talvez a viver o colapso que os colapsólogos têm esperado, que eles acreditam que produzirá o nosso necessário renascimento. E, pelo que tudo indica, as tentações nacionalistas também farão parte do novo mundo, e já começaram. A crise sanitária trouxe à luz a dependência económica dos Estados uns dos outros e fez chegar a hora do isolamento nacionalista. As potências económicas mundiais tenderão, portanto, à independência e soberania nacionais, e pergunto-me o que será da União Europeia que não consegue estar à altura da crise. Mas o renascimento deveria sobretudo levar-nos a adotar um modo de vida moderado, a aprimorar a produção e o consumo locais, sem necessariamente cair no retraimento, e fazer a ajuda mútua entre os povos prosperar. Conseguiremos recriar para nós mesmos os liames que rompemos? Vamos criar novos caminhos e abandonar o nosso imediatismo negativo? Seria sensato, porque a nova solidariedade deve estar dentro e entre as gerações. O coronavírus e a quarentena que provocou vieram pôr à prova o nosso potencial de despertar, é uma maneira de fazer-nos amar uma vida mais saudável e olhar para a natureza. Porque, se não aproveitarmos esta oportunidade e continuarmos a ser maus inquilinos, a natureza sempre poderá salvar a Terra e eliminar-nos, como aconteceu com os dinossauros.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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