Favelas em tempo de coronavírus: a peste da desigualdade

Longe de querer fazer coro ao bolsonarismo que quer pôr fim ao isolamento para defender o retorno económico dos investidores da sua campanha, o precariado brasileiro enfrenta o impasse entre a saúde e a sobrevivência.

Já faz tempo que a crise mundial gerada pela covid-19 deixou de ser unicamente um problema de saúde pública para ser uma crise multifacetada, com consequências sociais, políticas e económicas. Apesar da redução da pobreza ocorrida na última década, o Brasil segue sendo um país profundamente desigual e já não há dúvida de que a crise do coronavírus será especialmente dura com os mais pobres.

No Brasil, onde existem 13,6 milhões de pessoas vivendo em favelas e 40 milhões de trabalhadores informais, segundo informações do IBGE, faz soar o alarme relativamente aos riscos e ameaças que o novo coronavírus oferece às populações vivendo em condições de limite económico e habitacional. Sabe-se que as consequências deixadas por esta e outras epidemias são atravessadas por distinções de classes sociais e económicas, nomeadamente, aquelas que atingem os mais pobres. Assim, o vírus desta pandemia não é o único problema que neste momento ataca as favelas densamente povoadas do Brasil.

A conveniente narrativa de que o contágio das doenças infecciosas não reconhece fronteiras e classes sociais é uma história tendenciosa e mal contada. Hoje, porém, olhando para o diferencial de classe, os respetivos efeitos e impactos sociais, pode-se perceber o drama real que se estar a viver nas favelas diante dos riscos de contaminação e como essas pessoas enfrentam as consequências sociais e económicas deixadas pelo vírus. Deste modo, pode-se, com alguma precisão, sinalizar como a desigualdade afeta as opções e possibilidade de reagir e se proteger da nova peste.

Na semana passada, quando organizadores do movimento #FavelaContraOVirus apresentou ao público os resultados do Data Favela, mostrou que 13,6 milhões de brasileiros estão deixados à própria sorte em periferias e favelas. As recomendações e indicações de cuidado contra o vírus parecem não tomar em conta que estas pessoas não possuem as condições materiais suficientes e adequadas para atender as medidas de contenção. São muitos os marcadores de desigualdade: acesso insuficiente ao abastecimento de água potável, ausência de saneamento e rede de esgoto, privação de espaço urbano apropriado, ambiente doméstico subnormal e postos de trabalho informais. Este conjunto de condições é claramente um obstáculo às medidas de cuidado contra o covid-19.

Diante da abissal desigualdade brasileira, será possível contornar os impactos inevitáveis do coronavírus nas favelas?

Os resultados do levantamento evidenciam que esse contingente, maior do que a população portuguesa, por exemplo, está a enfrentar, para além da questão de saúde pública o desafio económico da sobrevivência, com menos recursos ou mesmo sem eles.

A pesquisa realizada pelo do Data Favela apontou que 47% dos moradores das favelas são autónomos e apenas 19% possuí contrato de trabalho. Para 75% dessas famílias, o fato dos filhos terem de ficar em casa aumenta as dificuldades para encontrar opções de trabalho e renda, especialmente para as mulheres. Ademais, 7 em cada 10 famílias já tiveram a renda reduzida como consequência da expansão do coronavírus. Sobre alimentação, 63% afirmam que seria prejudicada se precisassem ficar isolados em casa. Por fim, inevitavelmente, se perderem a renda, 72% não consegue manter o padrão de vida por tempo algum.

Inúmeras consequências podem ser ressaltadas, mas duas delas saltam aos olhos, a insegurança trabalhista e a insegurança alimentar. O regime de insegurança alimentar ao qual essas famílias estão submetidas implica em indisponibilidade e acesso irregular aos alimentos, a pesquisa demonstra como nesta crise a situação é agravada. A insegurança do trabalho, nesse contexto, aponta para maior intermitência, redução de benefícios, achatamento da renda, afetando material e psicologicamente, resultando em uma existência ainda mais precária destes trabalhadores.

O que se percebe é que não se trata de uma seleção adversa da contaminação pelo vírus, mas da produção de uma condição socioeconómica historicamente desvantajosa, construída em bases desiguais e excludentes relativamente às condições de acesso à educação, alimentação, oportunidades de trabalho e condições de habitação.

Esta fração de trabalhadores está mais exposta e com maior risco de contrair o vírus pelas condições dos seus trabalhos e pelas condições em que vivem. Sem dúvida isto é um fator que amplia e aprofunda a clivagem social brasileira, por exemplo, entre aqueles que podem se isolar em quarentena em suas casas e os que não podem, entre aqueles que podem fazer teletrabalho e os que não nem sequer possuem contrato. É assim o efeito do covid-19 sobre a desigualdade, reforçando ainda mais os contornos do distanciamento social realmente existente no Brasil.

Longe de querer fazer coro ao bolsonarismo que quer pôr fim ao isolamento para defender o retorno económico dos investidores da sua campanha, o precariado brasileiro enfrenta o impasse entre a saúde e a sobrevivência. Entre contrair um vírus em meio a luta para conseguir manter os principais meios de provisão ou tentar se isolar e ficar sem renda para atender as medidas de cuidado adequado.

Por último, lembramos Euclides da Cunha para se referir aos pobres do nordeste do Brasil: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte” e certamente já passaram por muitas crises, ou melhor, não há grandes diferenças entre a crise, incerteza e normalidade, razão pela qual aprenderam a desenvolver diferentes estratégias de adaptação e sobrevivência e certamente este é um elemento que devemos considerar e esperamos que sirva para que as coisas saiam melhor do que o esperado.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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