Do outro lado da linha está o medo da doença, da solidão, de perder quem se ama

“A incerteza do que aí vem e o medo de ser esquecido”. Estas são algumas das preocupações de quem liga para as linhas de apoio psicológico criadas um pouco por todo o país, sobretudo dos mais idosos que já viviam isolados, que são quem mais liga. Desemprego e violência doméstica começam a ser outros motivos para pedir apoio.

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Gabriel Sousa

Em dias normais, muito diferentes destes que agora vivemos, os centros de dia do Fundão estariam cheios de pessoas que já viraram páginas de calendários de dois séculos diferentes. Muitos dos que lá costumam passar diariamente para confraternizar com outros e outras camaradas da mesma faixa etária já viram de tudo. Passaram por uma ditadura, passaram por guerras, viram a sua terra do interior perder gente para a emigração, outros fazem parte desses que saíram e mais tarde voltaram, e todos eles venceram as várias crises económicas que teimaram em querer mantê-los no isolamento da interioridade de um país que ainda vive de olhos virados para o mar – três quartos da população portuguesa vive no litoral.

Mas, em idade que deveria servir para levarem a vida com mais tranquilidade, colherem os frutos de todas as vitórias conquistadas, tiveram de enfrentar mais um contratempo que se soma ao conjunto de adversidades anteriormente experienciadas. Num dia que parecia igual aos outros, tudo mudou. Por força de um inimigo a quem nunca viram a cara, toda a rotina que conheciam até ali alterou-se, assim como o estado anímico de muitos deles.

O novo coronavírus alterou por completo as suas rotinas diárias. E a incerteza que existe relativamente ao tempo que levará até que a normalidade seja reposta ou o medo de contrair a infecção tem efeitos na população a nível psicológico. Os mais velhos – grupo de risco - parecem ser os quem mais carece de respostas para encontrar o equilíbrio emocional, muitas vezes perdido por força do isolamento. Para atenuar o medo, o stress, a tristeza ou a ansiedade, um pouco por todo o país, vários municípios, criaram linhas telefónicas de apoio psicológico ao dispor de todos os que necessitem repor esse equilíbrio em dias de maior instabilidade emocional.

No Fundão, os centros de dia encerraram temporariamente e as ruas ficaram ainda mais desertas. Os mais idosos fecharam-se em casa e, nos casos excepcionais em que saem à rua, passaram a guardar uma distância de segurança das outras pessoas. O motivo para isto ter acontecido já é conhecido. O país está em estado de emergência há pouco mais de duas semanas para conter a propagação do novo coronavírus, que não é tímido no que toca a encurtar distâncias no mapa mundial. Em Portugal, já saiu do litoral para chegar a terras onde existia uma falsa segurança criada pela ilusão do isolamento.

Quase uma centena e meia de idosos isolados

Neste concelho do distrito de Castelo Branco, quem está por trás do telefone da linha de apoio é a psicóloga Magda Crisóstomo, que diz ao PÚBLICO ser a população mais idosa quem mais tem ligado, por viver “mais isolada”. A maior parte não tem familiares por perto ou vive em zonas “mais afastadas” do centro do município. No concelho há 141 idosos “em contexto de isolamento social”. Os números estão actualizados. Explica que foram levantados recentemente pela GNR, que lhos facultou.

É esse grupo mais vulnerável que habitualmente frequenta os centros de dia que agora estão encerrados. Por agora estarem recolhidos em casa, alguns sentem-se “ansiosos”. O contacto que têm com o exterior é escasso e por isso recorrem à linha de apoio para “desabafarem” com a psicóloga. Magda Crisóstomo diz que aproveitam essa oportunidade para falarem sobre a forma como estão a lidar com o problema. Há os que “choram” e os que tiram do peito as preocupações que têm com a família, que em muitos casos está “fora do país”.

A psicóloga que, antes de a linha ser criada, dava apoio psicológico no Gabinete de Apoio à Família já conhecia alguns dos casos de isolamento, alguns com patologias associadas. Parte desse grupo já vivia “num quadro depressivo” e tomava medicação. Com a alteração do cenário diz ter havido um “agravamento de sintomas”, tendo-se registado “mais ataques de ansiedade, perda de apetite e alterações no sono”. Ligam para perceber se esta mudança é normal. A psicóloga tenta confortá-los, explicando que neste quadro é esperado existirem alterações.

A ansiedade cresceu quando surgiu o primeiro caso de infecção no Fundão. A partir daí os munícipes passaram a levar “mais a sério” as indicações da DGS, algo que afirma não se ter verificado até esse momento.

O isolamento dentro do isolamento

A partir daí o telefone tocou mais vezes. Ligam sobretudo pessoas idosas ou filhos que estão preocupados com os pais. Liga também quem está preocupado com as circunstâncias deste novo isolamento, embora já antes vivessem isoladas. Magda Crisóstomo diz ter recebido um telefonema de uma senhora “já com uma certa idade” que, apesar de “estar habituada a estar sozinha”, não estava a lidar muito bem com o confinamento, denotando alguns sinais de stress por não poder sair de casa.

Os casos mais agudos vai seguindo mais de perto, entrando em contacto regularmente com os utentes da linha. No dia em que conversamos tinha feito 148 chamadas para medir a evolução do estado de ansiedade dos utentes. Por agora só está uma pessoa na linha, mas há outra colega que passará também a estar presente no Facebook e no Skype.

“O medo de serem esquecidos”

Em Famalicão, também com linha de apoio psicológico já em funcionamento, há oito psicólogos a trabalhar para responderem às chamadas dos munícipes. Catarina Alves é uma das profissionais especializadas que está na linha da frente. Ao PÚBLICO diz haver uma ansiedade acrescida por parte de idosos que estão longe da família. “Existe o medo de não voltar a ver a família, o medo da morte e o receio de sair à rua”, afirma. As preocupações aumentam, diz, pela “incerteza de não se saber quando isto vai acabar”. Há uma preocupação comum entre muitos dos utentes: “A incerteza do que aí vem e o medo de ser esquecido”.

Quem mais liga é a faixa etária entre os 60 e os 70 anos. “Estas pessoas têm mais medo da infecção” – fazem parte do grupo de risco. Além do apoio psicológico, a autarquia prevê por via de outros canais responder a outras necessidades do ponto de vista logístico – entrega de compras ou medicação. Para curar a mente, o ideal diz ser tentar manter uma rotina, não esquecendo a que existia antes do surto. Para ter a certeza que existem melhoras, acompanha “de perto” os utentes de forma a controlar “picos de tristeza ou de ansiedade”.

Não se sabendo ainda quanto tempo durarão estas medidas de prevenção ao contágio, do ponto de vista psicológico, existe a necessidade de antecipar o que aí vem, no caso de se alargarem durante muito tempo. “A saúde mental pode estar em risco”, afirma. A longo prazo acredita que este isolamento poderá “potenciar ou reforçar algumas patologias já existentes”, podendo desencadear quadros de “depressão”

No caso das famílias que agora têm de passar mais tempo juntas, aconselha a “reinventarem-se”, sob pena de passarem momentos mais conturbados, pelo número de horas que agora casais e filhos partilham o mesmo espaço.

A coordenar a linha de apoio social e psicológico de Matosinhos, Ana Rodrigues recorda ao PÚBLICO o número de divórcios que “dispararam” na China depois do confinamento. Por agora diz ainda não terem sido registados telefonemas que denotem esse tipo de preocupação, mas tem a “certeza” que a médio prazo vão existir.

Preocupação maior são os casos de violência doméstica já relatados por quem liga para a linha. “Já existem registos. Esses casos são de pessoas que já estavam sinalizadas e estão a ser encaminhados para os canais habituais”, afirma.

Desemprego a crescer

A psicóloga não atende telefonemas, mas todos os dias faz um briefing com a equipa toda que está a trabalhar a partir de casa. Dos vários motivos para se ligar para a linha há um que tem começado a surgir nos últimos dias: “Já estamos a receber telefonemas de pessoas que ficaram desempregadas. Como alguns não estavam no mercado regular de trabalho ficaram completamente desprotegidos de um momento para o outro”. O que se faz nestas situações? “Tentamos estabilizar a pessoa a nível psicológico e recomendamos o número da ACT [Autoridade para as Condições do Trabalho]”. Há casos dramáticos de pessoas que precisam de ajuda mais imediata: “Já ligaram a dizer que este mês conseguem assegurar a família, mas que no próximo mês já não conseguem”. Estes casos são direccionados para outros gabinetes de apoio camarário.

Há também quem ligue para se oferecer para voluntariado e quem levante questões sobre situações práticas relacionadas com o vírus. “Ligaram-nos a perguntar o que se faz com os resíduos de pessoas infectadas”, diz. Entretanto, a autarquia já encontrou uma solução. Também há profissionais de saúde que contactam a linha e pessoas infectadas que ligam para desabafar. Do rol de temas há quem denuncie infracções às indicações da DGS. Muitos são os que, depois de ligarem para a linha SNS24 e tendo ficado “sem resposta depois de mais de uma hora de espera”, procuram auxílio recorrendo à câmara. Quando acontece são aconselhados a seguir as indicações da DGS.

Do ponto de vista técnico está em primeiro plano “gerir a ansiedade, prestar informação e ajudar nos encaminhamentos necessários”. Crê que este tipo de serviço contribuiu para que se cumpra, como acredita que “grande parte das pessoas está a cumprir”, as recomendações. Porém, o futuro é imprevisível a nível de comportamento: “Preocupa-me que havendo uma escalada da pandemia as pessoas fiquem saturadas disto e passem a ter comportamentos de risco”.

Contudo, a psicóloga sublinha o suporte que foi criado tanto pela autarquia como por voluntários na resposta à pandemia. “Há muita gente que se tem envolvido de forma voluntária”, diz. Um pouco por todo o país, autarquias e população estão a criar bases de apoio logístico a quem precisa.

Mas, apesar da mobilização de muitos sectores na criação de uma base de auxílio, há quem detecte uma falha que nada tem a ver com este momento, mas que está inscrita no ADN das sociedades modernas, sobretudo as de contexto urbano. Da mesma equipa que está a trabalhar em Matosinhos, Ana Rita Amado, na linha de atendimento desde que arrancou, depois dos muitos telefonemas que já recebeu de pessoas que vivem em situação de isolamento - muitas delas de uma faixa etária mais elevada - chegou a uma conclusão sobre a forma como o afastamento das pessoas nas cidades pode ter influência directa numa resposta mais imediata ou não. Isto, porque há muita gente mais velha que já vivia isolada antes do confinamento: “Quando tento explorar as redes de suporte destas pessoas percebo que não surgem amigos ou vizinhos que façam parte dessa rede. Muitas vezes, as pessoas não conhecem os seus próprios vizinhos. E, nesta altura, estas pessoas poderiam ser uma óptima rede de suporte”.

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