“Temos que ter amor para dar de comer aos outros”: a lição de Manuel Fialho (1938-2020)

Os gastrónomos têm manias. E Manuel Fialho tinha as suas. Quando ia à lampreia, a Belver, o arroz servido era o que ele levava de casa. O arroz e um outro ingrediente abundante em qualquer restaurante.

Foto
Jerónimo Heitor Coelho

Os amigos gostam de imaginar que, esteja onde estiver – e dirigem o olhar para o alto –, Manuel Fialho, falecido no dia 25 de Março, andará a reunir almas suficientes para a criação de uma confraria de gastronomia alentejana, outra de vinhos, duas ou três tertúlias informais e, para as horas vagas, uma casa de fado. Sim, o embaixador emérito da cozinha alentejana era louco por fado. De pé e no palco.

Se Manuel Fialho tiver sucesso – e Luís Macara, director da Fundação Medeiros e Almeida, diz que “isso é certo, atendendo às suas capacidades diplomáticas” –, é plausível que o jantar inaugural do primeiro evento tenha canja de pombo bravo, uns salmonetes de Setúbal com menos de 15 centímetros, um coelho à São Cristóvão, perdiz em diferentes variações, favinhas de caça por ele inventadas e que deram alguma polémica à época e, para sobremesa, pão de rala. Num segundo evento, a lampreia será prato único, desde que Manuel consiga o arroz carolino de um produtor especial. E tudo isso fará com uma paixão desmesurada porque, como diz Chico Bolas, companheiro de guitarradas e petiscos, “tudo o que ele fazia seguia uma regra própria: temos que ter amor para dar de comer aos outros”.

Nascido em Évora, em 1938, Manuel Eduardo Amaral Fialho foi o elegante relações públicas do restaurante Fialho, mesmo quando já não pertencia à sociedade com os irmãos Gabriel e Amor. Foi o investigador que percorreu vezes sem conta o Alentejo à procura de receitas e foi ainda um mestre na arte de juntar gente para a criação de instituições dinamizadoras da gastronomia alentejana, fossem elas formais (confrarias), ou informais, como são os casos da Academia dos Bruxos e dos Lunes. A leitura do currículo de Manuel Fialho, organizado pelo gastrónomo João Cavaleiro Ferreira, impressiona – tanto podia estar numa prova de análise sensorial de presunto como a gerir uma plantação de Riesling na planície alentejana.      

Foto
A começar à esquerda: os irmãos Manuel, Amor e Gabriel Fialho Jerónimo Heitor Coelho

Se pensarmos nos grandes eventos gastronómicos que ocorreram no Alentejo, em todos Manuel Fialho participou. A criar, a presidir,  a orientar, a incentivar, a ensinar e a escrever. Cá dentro e lá fora, visto que andou pela Europa a revelar os sabores alentejanos. E foi a partir destas viagens que o chef António Nobre – restaurantes Degust'AR – concluiu que “Manuel Fialho tinha um prazer enorme em ajudar, partilhando o que sabia com os mais novos”. O investigador Virgílio Gomes confirma: “Não só conhecia bem os seus territórios como era generoso e afável com quem o procurava.”

Aliás, nas andanças que fazia pelo Alentejo à procura de receitas, “estava tão à vontade com toda a gente que podia passar tempo sem fim a escrever receitas antigas ditadas por gente não sabia ler”, refere Francisco Lamy, responsável das finanças da Confraria Gastronómica do Alentejo.     

Cosmopolita, mas sempre alentejano

Manuel era um homem viajado. E começou cedo, aos 18 anos, quando o pai o enviou para a Suíça, a fim de estudar hotelaria.  Andou por lá uns tempos, mas como a sua condição de emigrante sem papéis era uma trabalheira no confronto com as polícias, regressou. E com ideias. Mas o pai Manuel, criador da Taberna do Fialho em 1945, não lhe deu espaço de manobra.

Foto
Manuel Fialho pai, fundador do Fialho DR

A viagem à Suíça, a experiência na restauração em Macau e todos os eventos gastronómicos que promoveu cá dentro e no estrangeiro deram-lhe mundo. Amigo dos “três irmãos generosos” e cliente diário no Fialho, Miguel Louro, da Quinta do Mouro, classifica Manuel como “outra loiça”. “Era mais aberto, mais fino, mais arrojado  acima de tudo – um homem que poderia trabalhar em qualquer parte do mundo, que ninguém tenha dúvidas disso. Era cosmopolita, mas sempre alentejano.”

Apesar de não estar na cozinha do Fialho, quando o assunto era galinholas, o chef Gabriel, falecido em 2013, encomendava a tarefa ao irmão Manuel. “Para certos pratos, era um tipo meticuloso”, diz Miguel Louro. Outro amigo, Carlos Oliveira Cruz, dá como um exemplo uma sopa de perdiz que Manuel Fialho preparou na Universidade de Évora. “Para que a sopa estivesse no ponto às 13h, o Manel começou a confeccioná-la às seis da manhã. Nunca se havia provado um caldo de aves tão apurado como aquele.”

A propósito deste rigor na cozinha, Miguel Louro recorda-nos um célebre jantar na casa de amigos, com a presença de Gabriel Fialho. Comeu-se bem, bebeu-se melhor e em quantidades imagináveis. Quase de madrugada, e depois das cartas batidas na mesa, alguém sentiu fome. Como acontece nessas alturas, a fome alastra-se, pelo que lá mandaram Gabriel para o fogão. Quando este se apercebeu que a despensa e o frigorífico não tinham nada de jeito, recusou-se a cozinhar. Era o que faltava. Mas os amigos insistiram, a fome era negra. Que haveria ele de fazer? Uma açorda, claro. Problema: coentros, nem vê-los. Espreitando da janela da cozinha para o jardim, lá encontrou a solução: um punhado de escalracho. No estado em que estava toda a gente, seguramente ninguém daria pela coisa. E, de facto, não só não deram pelo piso de relva como ainda lamberam os beiços.

Ora, segundo Miguel Louro, tal episódio seria impossível com Manuel Fialho. “Nem que tivesse de saltar todos os quintais das redondezas até ao amanhecer, o Manel haveria de regressar com um molho de coentros.”

Foto
O restaurante Fialho, em Évora DR

O fado Tia Dolores

Não se estranhe, assim, que Manuel Fialho fosse rigoroso com as receitas. Quando estavam mal feitas, não se acanhava na crítica. Certa vez, no início de um almoço de lampreia em Belver, organizado pela Academia dos Bruxos (grupo que ficou com esse nome porque um dos comensais era massagista em Lisboa e com fama de curar qualquer mazela que lhe aparecesse), todos à mesa começaram a elogiar o prato. Todos, menos Manuel Fialho, que saiu em silêncio do restaurante para regressar algum tempo depois com um pacote de arroz e em direcção à cozinha, deixando a cozinheira boquiaberta. Uma hora depois lá saiu uma segunda dose de lampreia. O ciclóstomo em si não mudou, mas, diz quem lá esteve, o arroz era outra coisa.

A partir desta altura, conta-nos Carlos Oliveira Cruz, sempre que iam à lampreia a Belver, Manuel Fialho levava o carolino preferido e... a água para o cozer. O cloro e o calcário ofendem o arroz.

Este rigor que metia na comida também levava para o fado. Mas houve um dia em que as coisas não lhe correram de feição, lembra-nos João Gomes Esteves, ex-dirigente da CIP. “O Manel veio de Évora a Lisboa e passou por Setúbal para apanhar um amigo. Jantámos e, de seguida, fomos a uma casa de fado, onde lhe pediram para cantar a Tia Dolores, um dos seus fados preferidos. Arrancam as guitarras, o Manuel enche o peito e começa: Vi hoje a tia Dolores/veio falar-me dos filhos... e... e... ,de repente, fica em suspenso. A guitarra e a viola para a frente e para trás, o Manel pasmado, e nada de letra. Com ar grave, pede desculpa, diz que vai beber um copo de água e que se dê lugar ao cantador seguinte, que ele já voltava. Mas em vez de vir para a nossa mesa, saiu do restaurante. Esperou-se meia hora, uma hora, hora e meia e nada (naquele tempo não havia telemóveis). Desapareceu. Ficou tão triste que abalou sozinho para Évora, deixando o amigo de Setúbal apeado em Lisboa. Segundo sei, nunca mais cantou o Tia Dolores.”                        

O legado de Manuel Fialho fica nos livros, na carta gastronómica do Alentejo, nas memórias das filhas que o acompanhavam regularmente, nas tertúlias de muitos confrades espalhados pelo país e num restaurante que, com 75 anos, é gerido pelos sobrinhos.

Tempos houve em que ir ao Fialho era uma aventura. As coisas mudaram com a abertura de muitos novos projectos (alguns com antigos funcionários da casa) e, hoje, o Fialho é menos falado. Mas, num país que gosta de restaurantes a cheirar a tinta, seria importante manter e renovar o respeito por uma família que colocou Évora e a gastronomia alentejana na agenda de qualquer gastrónomo que se preze.

Sugerir correcção
Comentar