O que podem fazer os museus, estando encerrados?

Não sabendo o que nos espera nos próximos meses ou anos, podemos antecipar que o retorno à “normalidade” vai tardar. E importa questionar se verdadeiramente quereríamos manter a longo prazo essa dita “normalidade”, baseada, especialmente no caso dos grandes museus portugueses, na atracção de turistas estrangeiros aos magotes.

Os museus são talvez “bichos raros” no mundo em que vivemos. Pretendem-se constituir “instituições sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento” com “fins de educação, estudo e deleite”. Onde já se viu tal despautério no tempo mercantilista que corre? Sem fins lucrativos? Educação, estudo e deleite?

Pior ainda, os museus pretendem ser contratos intergeracionais de longa duração. Situam-se em terrenos onde se cruzam memórias comuns do passado, materializadas em colecções, olhares interrogantes do presente, materializados em trabalhos de investigação, e entrega cidadã, materializada na sua missão educativa. Uma equação que Steven Conn, com elegância, resume na afirmação de que os museus são “locais únicos situados na intersecção de objectos, ideias e espaço público” (em livro com título igualmente sugestivo: Do Museums Still Need Objects?).

A missão dos museus apenas se pode concretizar plenamente através da sua abertura a todo o tipo de utilizadores (e não somente a visitantes, entenda-se). Abertura e contacto físico, imediato ou de primeiro grau. Nada, absolutamente nada, pode substituir o calor da relação empática que se estabelece entre quem frequenta museus e as obras de arte que neles se podem sentir (mais do que ver e infelizmente quase nunca tocar). Museus virtuais apenas, sem suporte físico em colecções reais, constituem um contra-senso, uma aberração ao “ser museu”… ou apenas uma estratégia de marketing cultural, tirando partido do prestígio da palavra “museu”. Podem ser por exemplo, e muito bem, repositórios digitais. Mas não são museus.

Todavia, os recursos digitais e a comunicação à distância não devem ser subestimados pelos museus. Bem pelo contrário, e tanto quando visam a promoção da visita in loco, como quando se “limitam” a constituir estratégias de maior divulgação das colecções. Neste sentido, a presente situação em que os museus, praticamente em todo lado, estão encerrados ao público, tomada como oportunidade, constitui um factor poderosíssimo no incentivo destas dimensões. No imediato, os museus enfrentam dificuldades tão ingentes como as de todos os outros serviços que deixaram de cumprir as suas funções e de realizar receita, de um dia para o outro. O ICOM internacional emitiu um apelo dramático para a libertação urgente de fundos a museus que estão em risco de deixar abandonadas a colecções ( ... e a vaga de roubos a museus ocorrida nas últimas semanas é bem prova disso). Felizmente, em Portugal, pelo facto de os museus serem na sua maioria públicos e manterem as rotinas de segurança dos acervos, tal ainda não é sentido. Mas podemos estar certos de que também para os museus, todos os museus, o mundo não será o mesmo quando sairmos da crise da covid-19.

Não direi que será radicalmente outro. Menos ainda direi que será melhor, ainda que esteja possuído do optimismo filosófico que me leva a pensar que quanto mais o digital se disseminar, mais o lugar dos museus enquanto reservas do autêntico, necessariamente material, há-de ser valorizado. Efeitos negativos são de esperar em planos como os da centralidade dos recursos humanos e da dignidade contratual do trabalho. Mas a onda do digital será ainda mais avassaladora.

O museus estão por estes dias a surfar muito mais intensamente esta onda – e ainda bem. Num inquérito à situação dos museus europeus, que corre agora através da Rede de Museus Europeus (NEMO), pergunta-se se as seguintes actividades foram iniciadas ou reforçadas: programas de aprendizado em linha, exposições em linha, passeios virtuais pelo museu, podcasts, programas no YouTube, boletins especiais, conteúdos ao vivo (como visitas ou comentário de peças), aumento das colecções disponíveis via Internet, trabalho com hashtags nas redes sociais, jogos, passatempos e concursos. Por outro lado, a oferta disponibilizada por organizações internacionais, públicas ou privadas, de conteúdos relacionados com museus quase que explodiu por estes dias. Cite-se, a título meramente exemplificativo, a Europeana, a mais notável construção da União Europeia no domínio da recolha e disponibilização em linha de conteúdos culturais, mormente patrimoniais, que desenvolveu recursos baseados em colecções de museus e vocacionados para professores e jovens (os dossiês temáticos de ensino, os livros para colorir, etc.).

Aparentemente, pelo que me dizem, pedindo ajuda, os museus portugueses ainda pouco responderam ao inquérito da NEMO acima referido. Mas sabemos bem que também estão activos, como o demonstram por exemplo os conteúdos do Museu Nacional de Arte Antiga (comentários em vídeo de obras seleccionadas) ou do Museu de Lisboa (visitas guiadas a reservas) feitos expressamente para esta ocasião. A onda do digital está, pois, a passar também por aqui.

Não sabendo embora ainda o que nos espera nos próximos meses ou anos, podemos razoavelmente antecipar que o retorno à “normalidade” vai tardar bastante. E importa questionar se verdadeiramente quereríamos manter a longo prazo essa dita “normalidade”, baseada, especialmente no caso dos grandes museus portugueses, na atracção de turistas estrangeiros aos magotes, com decréscimo relativo e até absoluto de nacionais, tanto adultos isolados e famílias, como até das escolas, metidas estas, como estavam, em camisas de força regulamentares e financeiras que vinham dificultando as tradicionais visitas de estudo e outros programas.

Ora, sendo assim, por que não aproveitar as circunstâncias para reforçar todos os canais de contacto à distância, recentrando depois a missão dos museus naquilo que, no longo prazo, verdadeiramente lhes assegura o futuro, ou seja, o desenvolvimento da sociedade, diria até o empoderamento comunitário? Por estranho que pareça, este prolongado isolamento pode forçar em nós o desejo da partilha, como se sente por estes dias nas redes sociais, onde nunca se viram tantos conteúdos substantivos, reflexões interessantes, conferências e até cursos. Possam, pois, os museus surfar a onda, mas com o seu permanente sentido de locais únicos onde se interseccionam memórias antigas e ideias actuais, postas ambas ao serviço da cidadania.

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