Covid-19: Israel tenta parar coronavírus em comunidades ultra-ortodoxas

Uma localidade está sob cerco sanitário e os seus idosos vão ser retirados. Grande parte dos casos teve origem em sinagogas e o ministro da Saúde, que é ultra-ortodoxo, está infectado. Coronavírus expõe a tensão entre a autoridade do Estado e uma comunidade que não tem acesso a televisão, rádio, ou telemóveis.

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Os ultra-ortodoxos não têm seguido as orientações do Governo para evitar contágios pelo novo coronavírus ABIR SULTAN/EPA

O novo coronavírus está a ser um problema especial entre a comunidade ultra-ortodoxa de Israel, com uma cidade a concentrar 30% dos casos de infecção a nível nacional, numa grande desproporção com a taxa de infecções no resto da população. Tentar impedir a disseminação do novo coronavírus entre os ultra-ortodoxos é um desafio difícil para as autoridades - até o ministro da Saúde, que também é ultra-ortodoxo, está infectado. 

A localidade de Bnai Brak, perto de Telavive, foi isolada e peritos estimam que quase 40% dos residentes estejam infectados com o novo coronavírus, segundo a agência Reuters. 

Foi anunciado na quinta-feira um plano para retirar da cidade 4500 idosos, que pela idade correm um maior risco de formas graves da doença covid-19 provocada pelo coronavírus, mas não foi dito quando esta medida seria aplicada. Há hotéis preparados para receber em quarentena familiares de infectados que não estejam doentes.

Até agora, incursões de forças de segurança em bairros ultra-ortodoxos como Mea Sharim, em Jerusalém, para tentar que fossem cumpridas as regras decretadas pelo Governo têm sido recebidas com gritos chamando-lhes “nazis”. No local continuava a haver aulas nas escolas religiosas e a celebrar-se casamentos com um número significativo de pessoas.

Mas Bnai Brak parecia ser o caso mais grave e à sua volta foi criado um cordão sanitário com dezenas de barricadas e controlos nas entradas e saídas, com uma força extra de mil polícias a assegurar o bloqueio. Há ainda drones a vigiar. 

Para sair é agora precisa uma autorização especial, e apenas podem entrar comida e medicamentos ou outros produtos médicos.

Um modo de vida

Os judeus ultra-ortodoxos serão cerca de 12% da população de Israel mas representarão cerca de 60% dos casos de doentes de covid-19 em Israel nos principais hospitais, indica a rádio norte-americana NPR. Israel tem 7030 casos de infecção pelo novo coronavírus e morreram até agora 36 pessoas de covid-19. 

Há várias razões no modo de vida da comunidade haredi (ultra-ortodoxa) que explicam esta disparidade.

A primeira é que se trata de uma comunidade em que as pessoas vivem com pouco distanciamento físico, a começar por casas com grandes famílias: é normal haver famílias com seis ou sete filhos, e muitas vivem em simples T2 com um quarto para os rapazes e outro para as raparigas, não sendo raro que os pais durmam na sala. É uma comunidade, em geral, pobre.

A segunda razão é que é uma comunidade sem acesso rápido a informação - televisão, rádio e internet são proibidas, assim como telemóveis. Os únicos jornais admitidos são os religiosos (que seguem as suas próprias regras, por exemplo). 

A informação é mediada pelos rabinos, e estes só esta semana começaram a recomendar nas suas comunidades as medidas de distanciamento físico seguidas no resto do país há semanas.

Há ainda na comunidade, sublinha o jornalista Anshel Pfeffer no diário israelita Haaretz, uma suspeição profunda em relação a conhecimento técnico, ao que dizem peritos, à ciência moderna. Isto a par, sublinha Pfeffer, de uma característica central dos ultra-ortodoxos: “A sua crença profunda de que não é possível ensinar-lhes nada de novo. Não existe nada de novo. Eles sempre estiveram aqui, estudando a Torah, e sobreviveram apesar de tudo”. 

Mais do que desconfiança, o abrir espaço para esta vertente moderna seria ameaçar a fundação sobre a qual se ergue o seu próprio mundo: a ideia, diz Pfeffer, de continuidade, de que vivem “segundo a tradição judaica milenar, e a que todos os judeus aspiraram antes de se imiscuírem ideias estrangeiras nesta tradição”.

Esta não é a primeira vez que Bnei Barak, agora grande foco do coronavírus, desobedece a ordens do Estado, lembra o jornalista do Haaretz. Durante a Guerra do Golfo de 1991, os homens recusaram-se a cortar as barbas para poderem usar máscaras caso o regime de Saddam usasse armas químicas. Um importante rabino disse que não iriam cair mísseis na cidade. E não só não houve ataques químicos, pelo que cortar a barba não teria tido nenhuma vantagem, como os mísseis Scud iraquianos atingiram uma cidade vizinha mas não Bnei Barak. Isso foi visto como sinal de que a profecia do rabino se concretizou. 

Infecções em sinagogas

O ministro da Saúde de Israel, Yaakov Litzman, é ultra-ortodoxo (de Brooklyn, Nova Iorque) e tem andado num difícil equilíbrio entre tentar convencer os rabinos a dispensar os judeus em quarentena dos encontros religiosos, por um lado, e tentar, por outro, conseguir uma excepção dentro das regras do Governo para as cerimónias religiosas continuarem - mesmo que um quarto dos casos de infecção tenham tido origem em sinagogas, segundo os dados do mesmo ministério que dirige, sublinha a NPR. O próprio ministro está, entretanto, infectado.

O choque entre o moderno e o antigo, entre o mais secular e o religioso mais estrito, é uma linha que divide Israel desde a sua criação. E esta é uma das ocasiões, a maior desde o debate sobre o serviço militar obrigatório para os ultra-ortodoxos, cuja população cresce mais do que a média, em que o modo de viver de excepção dos ultra-ortodoxos está a deixar outros israelitas furiosos e mesmo com a sensação de que poderão ser postos em perigo pelas escolhas de uma comunidade com que não se identificam.

Alguns decidiram levar a cabo uma campanha, colando cartazes em frente a bairros ultra-ortodoxos dizendo em termos muito claros o que acham do seu comportamento: “Assassinos.”

Uma das pessoas que ajudou a organizar a campanha destes cartazes, Fleur Hassan-Nahoum, explicou à NPR que num recente encontro da câmara de Jerusalém, um dos representantes ultra-ortodoxos lhe disse que o que as autoridades estavam a sugerir era tudo o contrário do que os seus líderes religiosos lhes diziam para fazer. “Está a ser muito difícil com a comunidade ultra-ortodoxa porque é pedir-lhes para ir contra tudo o que conhecem e tudo o que são.”

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