Pós-modernidade medieval

A História não se repete de forma simplista e literal, mas há padrões que é possível identificar através dos tempos na natureza humana.

As duas últimas semanas de aulas que leccionei em regime presencial corresponderam, em História do 8.º ano, à abordagem dos conteúdos relacionados com os progressos científicos do século XVII e o desenvolvimento do método científico, seguindo-se a introdução aos princípios do Iluminismo.

Atendendo à situação que então já se vivia de expansão da covid-19, aproveitei para abordar o tema na perspectiva dupla de vivermos um tempo que é herdeiro tanto desse novo espírito científico, nascido na Idade Moderna, como de práticas típicas da Idade Média que pensaríamos completamente ultrapassadas.

Por um lado, temos todo o aparato tecnológico desenvolvido nos últimos três séculos, desde o microscópio para investigar o extremamente pequeno e os elementos mais básicos da vida até ao telescópio para explorar o infinitamente distante com vista a descobrir como poderá ter surgido essa mesma vida. A Ciência permitiu à Humanidade progressos enormes e cada vez mais rápidos. No início do século XX, perante o que já se achava ser uma enorme aceleração das conquistas humanas, em especial ao nível das comunicações e da capacidade de construir novas estruturas, viveu-se um tempo entre a euforia e a preocupação. No início do século XXI, perante uma aceleração muito maior, no novo mundo digital, mas não só, também se tem vivido entre a excitação da novidade e o medo. No século XX, a euforia seria derrotada por uma guerra mundial e depois mais outra, em combinação com a ascensão de regimes de matriz autoritária que associavam à democracia liberal a destruição da ordem tradicional dos tempos pré-modernos, vistos como mais lentos, mas mais seguros. No século XXI, a excitação com as conquistas tecnológicas está a ser muito contrariada pela difusão do medo em relação às consequências que esses progressos têm trazido à natureza e à própria Humanidade na forma do aparecimento de novas doenças que se vai tornando cada vez mais difícil conter no mundo globalizado sem ser com o recurso a métodos que exigem estados de excepção nas regras da democracia.

Apesar de todos os progressos, percebemos que para combater uma nova estirpe de um vírus já conhecido o método mais eficaz ainda não evoluiu muito do que foi usado na Idade Média para tentar conter a expansão da Peste Negra, embora então com resultados que agora classificaríamos como “mitigados” por falta dos conhecimentos científicos que só surgiriam alguns séculos mais tarde.

O confinamento e os cordões sanitários que se mostram as medidas com melhores resultados na limitação da expansão da presente pandemia não diferem em muito dos entaipamentos de meados do século XIV, fazendo as unidades de cuidados intensivos as vezes de lazaretos ou equivalentes e os equipamentos sanitários dos médicos e enfermeiros as vezes das indumentárias dos “físicos” da altura, que agora achamos ridículas, mas que então provocariam as mesmas sensações (intimidação, confiança) que hoje nos transmitem os equipamentos usados pelos médicos nos hospitais mais avançados.

A eficácia dos meios médicos avançou, a pandemia não progride aos milhões por dia, a investigação científica vai muito além de colocar ervas aromáticas no bico da máscara medieval de protecção, mas há aspectos que mantêm os mesmos traços e sensações que demonstram como os humanos evoluem em termos psicológicos muito mais devagar do que o aparato tecnológico do que se rodeou. O horror aos mortos pelas “pestes” continua a levar a que se queimem os cadáveres e o medo da propagação a que se isolem os doentes. Até as teorias da conspiração têm traços comuns: se na Idade Média, na Europa, era usual atribuir a responsabilidade (dolosa) pela contaminação principalmente aos judeus, agora isso é feito relativamente aos chineses. Onde antes se encontrava na doença um sinal de castigo divino agora encontra-se a marca da revolta da mãe-Natureza.

A História não se repete de forma simplista e literal, mas há padrões que é possível identificar através dos tempos na natureza humana. Foi isso que procurei explicar aos meus alunos, incluindo os que possam vir a ser futuros governantes e desde novos se interroguem sobre a utilidade de se aprender História. Procurei explicar-lhes que o mais esperto dos telemóveis ou o mais potente dos computadores apenas altera a superfície do nosso quotidiano e que são muitas as permanências que resistem, não por serem traços de arcaísmo, mas por serem o que nos faz humanos através dos milénios e apesar de tudo o que consigamos descobrir ou conquistar.

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