As varandas deram origem às marquises, e agora?

A questão que se impõe, confrontados agora com o isolamento profiláctico, é reequacionar a casa como um refúgio. Torná-la novamente num verdadeiro abrigo capaz de proteger famílias inteiras, sem que estas se devorem a elas mesmas pelo cansaço de uma vivência de 24 sobre 24 horas.

Foto
Unsplash

O que era impensável acabou por acontecer. Impensável porque o pensamento, sobre a possibilidade de um vírus mudar o mundo como o conhecemos, não era recorrente e ficou evidente que nem mesmo os países mais avançados da Europa ocidental estavam preparados para o que aconteceu. Porque os avisos, esses sim, foram sendo recorrentes; foram, porém, encarados como uma fantasia, uma realidade distorcida que, a acontecer, seguramente não nos aconteceria a nós, neste presente. Parece ser um defeito congénito da humanidade a inépcia com que se previne cenários globais como este que estamos a viver com a pandemia da covid-19. Se, por um lado, algumas medidas foram tomadas como (re)acções preventivas, por outro é certo que não estavam reunidas todas as condições para que tais medidas fossem totalmente eficazes: confrontados com a premissa de ter de ficar em casa ontem, hoje e amanhã, teria sido de cirúrgica importância educar ou informar as pessoas das forçosas e necessárias transformações a que a nossa casa estará mais cedo ou mais tarde sujeita.

Com a onda avassaladora da globalização, o conceito de casa sofreu uma metamorfose interessante no sentimento de propriedade, afectividade e de protecção. Os alojamentos temporários nunca tiveram tamanha popularidade e os próprios pertences (objectos pessoais) que preenchiam aquela visão clássica da casa vão sendo enviados para a cloud e estão cada vez mais acessíveis remotamente em todo o lado. A recente pressão imobiliária pelo metro quadrado também confinou o desenho de algumas habitações a caixas de sapatos que, garantidamente, servem os neo nómadas que colectivamente nos tornámos. A construção de casas de consumo passou a ser a norma na viragem deste século, substituindo a funcionalidade da construção dos meados do século passado.

A questão que se impõe, no entanto, e confrontados agora com o isolamento profiláctico, é reequacionar a casa como um refúgio. Torná-la novamente num verdadeiro abrigo capaz de proteger famílias inteiras, sem que estas se devorem a elas mesmas pelo cansaço de uma vivência de 24 sobre 24 horas. Este exercício terá necessariamente de passar pelos profissionais, pela vontade política e desenvolver-se-á num prazo que não é imediato. No entanto, hoje, as casas são as nossas salas de aula, as nossas salas de reunião, os nossos pavilhões desportivos, cinemas, refeitórios, infantários… e dramaticamente (em alguns casos) são também as nossas enfermarias. Como tal, esta mudança, mais do que uma necessidade, é uma urgência da qual todos deveríamos estar conscientes e da qual todos deveríamos participar, começando já hoje.

Por mais difícil ou estranho que possa parecer, podemos encarar esta mudança como uma verdadeira oportunidade para desfrutar do nosso lar. Cada casa é um caso. Cada particularidade de uma família condicionará de maneira diferente a estratégia a adoptar; daqui em diante, descobrir-se-á sem preconceitos verdadeiras ferramentas úteis à vida confinada à casa. Quem sabe se não olharemos para trás e veremos neste ponto a viragem na percepção da função que lhe atribuímos.

Separar aquilo que realmente é importante ter em casa daquilo que é acessório deve ser o primeiro passo a tomar; a optimização do espaço é fundamental! Independentemente do tamanho ou outra condição, a casa deve ser multifacetada. Pode ter vários espaços com funções específicas ou apenas um que facilmente se transforme. Devem existir sempre, principalmente em famílias numerosas, espaços privados e espaços públicos. Onde possamos estar em lazer e em grupo ou em silêncio e sozinhos. A casa deve ser o reflexo de todos os que nela habitam: todos devem ter uma palavra a dizer na sua organização e na sua decoração, até mesmo os mais pequenos. A contribuição fortalece o sentimento de pertença que, por sua vez, fortalece a preservação e manutenção da casa.

A criação de algumas rotinas pensadas em função dos ciclos do sol e de como este se expõe perante a casa pode ser outra ferramenta importante. Com o tempo, as sinergias entre todos vão sendo criadas, optimizando não só o espaço, mas também o tempo. Deixar que os espaços se transformem várias vezes fará com que a casa ganhe dimensão e dinâmica. Para os mais pequenos (mas não só), é importante criar a ilusão de que se está a viver numa cidade minúscula, tantas que são as funções oferecidas.

À luz de alguns comportamentos desviantes, admite-se a dificuldade de permanecer em casa e esta nunca irá substituir a cidade com as suas praças e jardins, mas a casa pode ser mais completa. Para isso também há que respeitá-la. Em retorno, ela vai promover-te a lucidez, a saúde mental, reduzindo a angústia e ansiedade do dia-a-dia que todos nós passamos neste momento. Em casa vamos todos ficar bem.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários