A teia atractiva da ditadura

China é uma “ditadura perfeita”. É um país com “uma ideologia na qual uma pessoa deixa de existir enquanto ser autónomo e fica englobada na nação”.

Na China não há direitos individuais, e foi isso que um expatriado percebeu quando foi buscar a mulher e o filho ao aeroporto de Xangai, após dois meses sem os ver na sequência do surto de coronavírus. Eles estavam na Europa e regressaram quando a situação acalmou na China, piorou no resto do mundo. Mas ao saírem do avião, o filho tinha sinais de febre, conforme verificado pelas máquinas que medem a temperatura a todos os que entram no país. Testado de imediato, a criança deu positivo ao vírus, o teste da mãe foi negativo. A criança, de oito anos, foi-lhe retirada, e de nada valeram os gritos de um e outro, de nada valeu a agitação do pai e marido, que assistiu a tudo ao longe.

A criança desapareceu nas mãos de uns agentes vestidos como se fossem astronautas, a mulher encaminhada para um hotel, impedida de sair nos próximos dias, o marido obrigado a regressar sozinho para casa, sem sequer saber para que hospital o seu filho de oito anos foi levado. É um caso real que não pode ter nomes, porque a China é uma ditadura, “a ditadura perfeita”, como refere o pensador norueguês Stein Ringen. É um país com “uma ideologia na qual uma pessoa deixa de existir enquanto ser autónomo e fica englobada na nação”. Mas há quem veja nisto um registo de eficácia, e é certamente isso que a propaganda chinesa procura agora mostrar ao mundo. Mas é esquecer o resto, o lado sombrio da ditadura.

Na China, todos os recursos são usados para sinalizar a mínima dissidência e a população é permanentemente vigiada. Há câmaras de reconhecimento facial, como as que foram implementadas no metro de Pequim em Outubro passado; usa-se a inteligência artificial no controle das redes sociais, da big data, do comércio electrónico e das telecomunicações. A distopia de George Orwell no livro “1984”, um mundo onde os cidadãos eram ultra vigiados, tornou-se numa realidade. Os que saem da linha perdem pontos no seu cartão de cidadão e com eles o acesso a maiores comodidades e até ao direito a viajar. São as regras do jogo.

Quem contesta o regime engrossa o número de prisioneiros políticos, onde se encontram juristas, jornalistas, historiadores, economistas, artistas, etc. Há mesmo um milhão de uigures do Xinjiang em campos de concentração, eufemisticamente chamados de reeducação. Em Novembro passado, os “China Cables” denunciaram uma política de repressão sistemática e de internamento em massa na região do Xinjiang, onde a lavagem ao cérebro é permanente, com os detidos a terem de estudar o mandarim, as leis chinesas e o pensamento de Xi Jinping. Na propaganda chinesa, eles surgem sempre felizes diante das câmaras de televisão, um pouco à semelhança daqueles que estavam nos campos de concentração alemães quando a Cruz Vermelha Internacional por lá passava, antes do início da II Guerra Mundial.

Este lado sombrio do regime é frequentemente abafado, quer em visitas de dirigentes internacionais, quer nas organizações multilaterais. É preço a pagar para se ter acesso ao vasto mercado chinês e ao seu sucesso económico.

Para o entender há que regressar a 1992, a esse contrato com a sociedade chinesa definido pelo líder à época, Deng Xiaoping, estabelecendo a liberdade para enriquecer desde que não se pusesse em causa o poder do partido comunista. A história é, desde então, a de uma longa marcha em direcção à afirmação da China no mundo, com o ano de 2001 a tornar-se crucial nas relações internacionais: a China entrou na Organização Mundial do Comércio com os seus quase mil milhões de trabalhadores e isso mudou o sistema comercial global, com “a perda de muitos postos de trabalho no Ocidente”, como refere Kishore Mahbubani, especialista em relações internacionais na universidade de Singapura. 

O Império do Meio tornou-se num farol para o mundo empresarial de todos os continentes, acarretando “o declínio dos salários reais e uma percentagem menor na produção nacional” nos países ocidentais. Para a China foi a fórmula para conseguir tirar da miséria milhões de chineses e criar uma vasta classe média.

Este grande salto em frente levou Pequim a procurar seduzir o resto do planeta em prol dos seus interesses, aproveitando as fraquezas das democracias europeias e o vazio diplomático que os Estados Unidos da América foram deixando, particularmente nos últimos anos, com as decisões de Donald Trump em retirar o seu país de várias organizações e acordos internacionais, como foi o caso da Unesco, do conselho dos direitos humanos da ONU ou do acordo de Paris para o clima.

Nesta sua estratégia a longo prazo, a China tem usado as organizações multilaterais a seu favor, consolidando o poder no interior delas através de uma política de porta-moedas: é hoje o segundo maior contribuinte para o orçamento das Nações Unidas e o segundo maior contribuinte para as operações de manutenção de paz. No reverso exigiu e conseguiu postos cada vez mais altos nas estruturas da ONU, condicionando assim as narrativas, particularmente as dos direitos humanos, e evitando várias condenações públicas e alguma má publicidade.

Com Xi Jinping, no poder desde 2012, a afirmação do poderio chinês subiu a um novo patamar. As “novas rotas da seda”, um plano de investimentos de 3000 milhares de milhões de dólares destinados a concretizar a supremacia comercial da China no mundo, a sua influência tornou-se cada vez maior. Mas muitos dos seus investimentos acabaram por gerar uma dependência assimétrica, como é o caso de vários países africanos, tornados cada vez mais tributários a Pequim.

A China vê oportunidades em cada sinal de fraqueza nos outros, e foi assim que conseguiu adquirir sectores chave nalguns países europeus na esteira da crise do euro. Quando a União Europeia penalizou alguns dos seus por, alegadamente, terem gasto dinheiro a mais, ou, como referiu um antigo presidente do Eurogrupo, por terem esbanjado o dinheiro “em vinho e mulheres”, bastou à China chegar-se um pouco mais à frente para adquirir, por exemplo, a EDP portuguesa ou o porto do Pireu na Grécia.

O alarme acabou por surgir em Bruxelas em Março do ano passado, quando a Itália endossou as “novas rotas de seda”, tornando-se no primeiro país do G7 a abrir-se à estratégia chinesa. No Conselho Europeu de Março de 2019, a China foi classificada como um rival sistémico e um concorrente económico à procura da liderança tecnológica. A União Europeia começou então à procura de formas para evitar que a China tome conta de empresas estratégicas, sem conseguir definir os moldes em que isso possa ser contrariado, e a única regra é a de avisar previamente os restantes parceiros europeus se tal cenário se vier a colocar.

É certo que nesta crise em que o mundo se encontra, a China não tem capacidade para se endividar muito mais, a sua dívida global rondava os 266% do PIB em 2019, de acordo com o FMI; muito do seu crescimento assenta no consumo interno, e ele representa agora 60% do seu crescimento, mas só aos poucos está a ser retomado. E sendo o primeiro exportador mundial, a China vai sofrer com a forte quebra da procura externa e uma eventual diversificação, leia-se deslocalização para a Europa de algumas cadeias de produção, já evocadas por Emmanuel Macron para áreas como a saúde, energia, comunicações e inteligência artificial.

Mas com isto não nos enganemos, a ditadura chinesa controla um gigante económico, tecnológico e a dar já sinais de pretender alargar o seu poderio ao domínio militar. Sabe dividir para reinar, vangloriando o multipartidarismo e multiplicando os acordos bilaterais, e está agora numa guerra de propaganda para afirmação do seu modelo na luta contra o vírus.

Nesta altura em que as cartas da geopolítica vão ser redistribuídas, a China não vai deixar de ter um papel preponderante. É uma ditadura, mas será sempre incontornável em qualquer cenário futuro. Cabe às democracias europeias não se perderem nos erros contabilísticos da crise do euro, terem a coragem de retomar o quadro de valores que lhe está na base. Nesta Europa mergulhada na incerteza, talvez seja prudente regressar ao passado, a essa necessidade de ultrapassar egoísmos e nacionalismos, mobilizar forças e meios para reconstruir um projecto solidário em nome da paz, do bem comum e da justiça social, como sucedeu após a II guerra mundial. 

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