Covid-19: em Guayaquil, os corpos estão a ser abandonados nas ruas

Os serviços de Saúde da segunda maior cidade do Equador não estão a dar resposta, os crematórios exigem preços impossíveis e as casas mortuárias recusam-se a recolher os corpos.

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Os habitantes de Guayaquil deparam-se com vários corpos deixados na rua da cidade STRINGER/Reuters

Corpos abandonados em casas e nas ruas por falta de caixões, serviços de Saúde sem resposta, crematórios que cobram preços demasiado altos para os cidadãos comuns estão a transformar a cidade de Guayaquil, no Equador, num ponto negro da pandemia de covid-19. Só esta cidade portuária, que dá acesso a zonas de praia, tem mais mortos do que países inteiros da América do Sul, como Peru, Argentina, Colômbia, Uruguai, Venezuela, Bolívia e Paraguai, diz a imprensa equatoriana.

Em Guayas, a província a que pertence Guayaquil, há 1937 pessoas infectados, e o total nacional é de 2800. Há em todo o país 98 mortos, diz o jornal equatoriano El Comercio. Na província de Guayas registaram-se 63 mortos devido ao novo coronavírus, mas, segundo o mesmo diário equatoriano, o Governo recusa-se a revelar os números só para a cidade de Guayaquil.

O site Portal V sugere números muito diferentes, num artigo em que reproduz o tweet que um vereador da câmara municipal de Guayaquil, Andrés Gushmer, pôs online às 12h08 de segunda-feira: “Já foram retirados das suas casas mais de 400 vítimas mortais até esta hora de segunda-feira.”

Os bairros pobres, parte significativa de Guayaquil, não têm acesso aos cuidados de saúde (nem estes estão a conseguir responder) e as casas mortuárias recusam-se a recolher os mortos por receio de contágio. Além disso, parece haver uma falta de caixões – como disse o proprietário de uma funerária ao jornal El Comercio. Por estes dias, recebe 50 solicitações para funeral  antes, recebia 15.

Os cemitérios não comportam tantos funerais. As pessoas fazem fila à porta, porque não conseguem ser atendidas ao telefone, para marcar hora para o funeral, relata ainda o Portal V, que mostra uma cidade em que o sistema de lidar com os mortos entrou completamente em colapso.

O resultado é que os familiares das pessoas que morreram não sabem o que fazer dos corpos. Alguns deixam-nos em casa, outros levam-nos para a rua, esperando que as autoridades os recolham mais cedo ou mais tarde.

“Deixam-nos à berma das ruas, em frente a hospitais, ninguém quer pegar neles”, disse à agência espanhola EFE a presidente de câmara de Guayaquil, Cynthia Viteri, que está em isolamento depois de ter tido resultado positivo no teste à covid-19. 

O problema não se deve apenas ao medo de contágio, mas também por ter sido determinado que os cadáveres de vítimas de covid-19 devem ser cremados. Há três crematórios em Guayaquil, todos privados, e os preços que cobram não são acessíveis aos mais pobres.

O Governo, que destacou polícias e militares para impor o cordão sanitário em Guayaquil, criou uma força especial para recolher os corpos e informou que esta semana recuperou 300 entre 25 e 30 de Março, de acordo com o El Comercio. O vice-presidente, Otto Sonnenholzner, sugeriu que os corpos fossem enterrados em valas comuns, mas acabou por recuar, prometendo “funerais decentes”. 

Guayaquil, com mais de três milhões de habitantes num país de 17 milhões, é a cidade mais atingida pela pandemia no país sobretudo devido ao regresso de emigrantes equatorianos de Espanha, por a cidade ter lá uma grande comunidade, espalhando a doença sem que as autoridades adoptassem um controlo apertado a partir do primeiro caso.

“O primeiro grande propagador da doença estava entre aqueles que regressaram de Espanha. Infectou 17 familiares, dos quais dois morreram. Não houve naquele momento boas políticas de prevenção para as pessoas que vinham de fora do país”, disse ao El Comercio Esteban Ortíz, médico na Universidade das Américas, em Quito. 

A rápida propagação do coronavírus e a fraca capacidade de resposta dos serviços de Saúde, fragilizados por anos de austeridade imposta pelo Fundo Monetário Internacional, levaram o Presidente, Lenín Moreno, a decretar o estado de emergência com recolher obrigatório (das 14h às 5h). Os militares regressaram às ruas, depois de terem reprimido manifestantes em Novembro, e os relatos de espancamentos e humilhações públicas a quem viola o recolher obrigatório tornaram-se comuns. 

“As reformas de austeridade recomendadas pelo Fundo Monetário Internacional levaram-nos a esta situação. Estes programas foram adoptados com resultados financeiros em mente, mas não as consequências para as populações. E isso é o que estamos a ver hoje”, disse ao jornal argentino Pagina 12 Pablo Iturralde, economista do Center for Economic and Social Rights (Nova Iorque). 

O Presidente está a tentar evitar a todo o custo intervir na economia para continuar a pagar a dívida nacional ao Fundo Monetário Internacional e as suas medidas têm posto as consequências económicas nos ombros dos trabalhadores: os patrões podem impor férias no período da quarentena e suspender os salários por tempo indefinido. Uma vez ultrapassada a crise pandémica, o país pode entrar em convulsão social, como aconteceu em Novembro

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