Mieloma Múltiplo: Uma doença em que sintomas comuns podem atrasar o diagnóstico

A cura do mieloma é ainda excepcional, mas o conhecimento cada vez mais profundo da doença e seus mecanismos dá-nos a esperança que venha a aumentar nos próximos anos.

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Kenny Luo/Unsplash

“Tinha dores, começaram pelas costelas, depois na bacia… Estava cansado, esmorecido… Não era a mesma coisa há muito. Depois parti a perna, nem sei como.”

“Cansava-me e estava sempre constipada... Tive uma pneumonia e disseram então que era uma doença de sangue.”

São assim as queixas de muitos doentes com mieloma múltiplo, doença rara mas com cerca de 500 novos casos por ano no nosso país. 

Vergílio Ferreira, no seu romance Aparição descreve bem a hesitação do médico que é confrontado com um homem que lhe pede um remédio “por já não ter a mão que tinha para semear” e não saber desde quando nem porquê.

Queixas que podem ser desvalorizadas se não houver muita atenção por parte dos profissionais de saúde: Sintomas vagos, de agravamento lento, dores nos ossos em pessoas idosas — já que a doença é sobretudo frequente acima dos 60 anos e muito rara antes dos  40. Terá portanto tendência para aumentar nos próximos anos, acompanhando o aumento da longevidade e os avanços nos tratamentos de outras doenças.

Que doença é esta, em que dores nos ossos e fracturas conduzem à especialidade de Hematologia? O mieloma múltiplo é uma doença maligna, provocada pela proliferação de plasmócitos na medula óssea. Estas células ocorrem normalmente na medula em quantidades limitadas e têm competência imunológica – produzem proteínas que são anticorpos com especificidade para os múltiplos antigénios com que contactamos ao longo da vida. No caso do mieloma, os plasmócitos tornam-se malignos, a proteína produzida já não tem essa função e é chamada proteína  monoclonal. 

A obesidade é, cada vez mais, apontada como um factor de risco relevante. Infecções ou inflamações crónicas e contacto com várias substâncias tóxicas e radiação têm também sido referidos como possíveis causas. Não há qualquer evidência de etiologia infecciosa.

Existe em cerca de 3 a 4% da população acima dos 50 anos uma anomalia chamada “gamapatia monoclonal de significado indeterminado”, onde se detecta em análises de sangue (electroforese de proteínas) uma pequena quantidade de proteína monoclonal. Esta situação é mais frequente com o avançar da idade, atingindo cerca de 7,5% dos indivíduos acima dos 85 anos. Apesar de, na maioria dos casos, não se verificar evolução para mieloma, este achado deve ser sempre avaliado medicamente e efectuados exames para estimar essa probabilidade. A etiologia desta alteração não está ainda estabelecida, constituindo uma fonte importante de investigação na actualidade.

O quadro clínico do mieloma múltiplo é muito variado, sendo particularmente frequente a presença de dores ósseas e anemia. 

As células malignas (plasmócitos) segregam várias substâncias que alteram o equilíbrio metabólico do osso, (estimulando células chamadas osteoclastos, que aumentam  a sua destruição) o que ocasiona as dores ósseas, podendo levar a fracturas — em especial na coluna e bacia. As fracturas da coluna são particularmente relevantes, pelo risco de compressão medular, com consequências irreversíveis se não forem identificadas e tratadas precocemente. Já as compressões de raízes nervosas, pelo quadro de dor e impotência funcional que provocam, podem alertar mais precocemente para a existência da doença.

A substituição progressiva das células normais da medula pelos plasmócitos pode levar a  anemia, com a sintomatologia clássica de palidez cutânea, cansaço fácil e diminuição da tolerância ao esforço. Nas pessoas mais idosas pode haver síncope (desmaios) ou queixas cardíacas.

As infecções são particularmente comuns nestes doentes, devido à falha de produção de anticorpos pelos plasmócitos malignos, e esta situação pode ocorrer também durante os tratamentos.

Menos frequente, mas muito importante pela gravidade, é a insuficiência renal, pelo excesso de proteína monoclonal, que pode exigir hemodiálise. A destruição óssea liberta cálcio para o sangue, podendo levar a outra situação de emergência, chamada hipercalcémia, que pode ainda agravar a função renal. 

Deve-se, portanto, suspeitar da doença em caso de sintomas arrastados de anemia sem outra explicação, bem como de dores ósseas persistentes. Estas, em especial, exigem bastante perspicácia médica, dado que na idade em que a doença é habitual estas queixas são, também, frequentes e muitas vezes não valorizadas.  

O diagnóstico é efectuado por uma combinação de exames – análises ao sangue, urina e medula óssea – e exames de imagem de vários tipos para avaliar a doença óssea.

Actualmente, a escolha do tratamento depende de dois factores essenciais: a idade do doente e o seu estado geral/doenças prévias.

A cura do mieloma é ainda excepcional, mas o conhecimento cada vez mais profundo da doença e seus mecanismos dá-nos a esperança que venha a aumentar  nos próximos anos. Com efeito, a evolução nos tratamentos tem permitido aumentar o tempo de vida significativamente. Na actualidade, mais de metade dos doentes têm sobrevivência acima dos cinco anos, e cerca de 25% acima dos 10 anos. 

Tem-se também melhorado muitíssimo a qualidade de vida, graças a medidas que reduzem a anemia, evitam as fracturas e tratam as infecções a que os doentes estão sujeitos. A multidisciplinaridade é aqui fundamental.

A valorização dos sintomas e a procura de consulta médica em situações de gamapatia monoclonal, poderá permitir em muitos casos o diagnóstico mais precoce da doença, evitando nomeadamente a ocorrência de insuficiência renal ou lesões ósseas graves que se mantêm incapacitantes mesmo depois da terapêutica.

E temos, felizmente, muito mais ferramentas de diagnóstico e terapêutica na actualidade do que em 1959, quando Vergílio Ferreira escreveu Aparição.

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