Morreu Ellis Marsalis, o patriarca do mais célebre clã do jazz

Pianista e professor, representante distinto da música de Nova Orleães e pai de Wynton, Branford, Delfayo e Jason Marsalis, todos eles músicos de relevo, Ellis não resistiu à covid-19. Tinha 85 anos.

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Ellis Marsalis era considerado um ícone da música da sua cidade, Nova Orleães SKIP BOLEN/lusa

Era o patriarca da família, um patriarca incontestado mesmo se quatro dos seus seis filhos acabaram por tornar-se mais célebres e premiados do que o pai. Eles, Wynton, Branford, Delfeayo e Jason, tinham perfeita consciência do quanto deviam a Ellis Marsalis, o pianista de jazz e professor de músicos como Terence Blanchard e Harry Connick Jr. que a presidente da Câmara da sua cidade, Nova Orleães, apelidou de “lenda": “Ele é o protótipo do que queremos dizer quando falamos do jazz de Nova Orleães. Era um professor, um pai e um ícone.” Ellis Marsalis morreu na quarta-feira, aos 85 anos, somando o seu nome à lista de vítimas do SARS-CoV 2, na qual se vêm acumulando diversas perdas no universo das artes. A morte foi confirmada pelo filho Branford,. em comunicado.

Quando os Marsalis começam a ganhar proeminência na cena jazz americana, estamos no início dos anos 1980. WyntonBranfordDelfeayo e Jason lideram então os chamados Young Lions, movimento que advogava o regresso a um purismo clássico como reacção ao free jazz e às experiências fusionistas da década anterior. Ellis, o pai, era um músico de músicos, com larga experiência, mas pouca obra gravada. Os seus talentos como pianista eram reconhecidos, o seu estatuto enquanto pedagogo e guia de novos músicos porventura ainda mais, mas escasseavam os registos discográficos – algo que viria a alterar-se a partir dessa altura, com Ellis a gravar álbuns como Ellis Marsalis Trio (1991), Whistle Stop (1994) ou On the First Occasion (2013).

Homem de palco e sábio da academia, formou-se nos anos 1950 e 1960 ao lado de Ed Blackwell, Al Hirt, os irmãos Cannonball e Nat Adderley e acompanhou brevemente o revolucionário free jazz Ornette Coleman – a relação não estava destinada a durar, e Ellis confessaria, anos depois, que não sabia que função poderia um pianista ocupar no novo jazz que Coleman criava.

Um pedagogo cool

Nascido em Nova Orleães a 14 de Novembro de 1934  filho de uma dona de casa, Florence Robertson, e de Ellis Marsalis Sr., proprietário de um motel nos arredores da cidade que acolhia Martin Luther King ou Ray Charles , Ellis Marsalis iniciou-se no saxofone antes da viragem definitiva para o piano. Na cidade onde era rei o jazz tradicional, directamente ligado às suas raízes fundadoras, Ellis era um modernista, entusiasta do bebop e do arrojo de Thelonious Monk, mas também um pragmático que condescendia em juntar-se a combos soul e rock’n’roll quando a tal se via obrigado para sustentar a família.

Licenciado em Educação Musical pela Universidade de Dillard em 1955, alistou-se nos Marines no final dessa década, passando a integrar os Corps Four, combo que actuava em rádio e televisão para promover o recrutamento através do jazz. A um período dividido entre o trabalho diário no motel do pai e as actuações nocturnas nos clubes de Nova Orleães, seguiu-se a direcção dos estudos de jazz, dirigidos a estudantes do ensino secundário, no Centro para as Artes Criativas de Nova Orleães, onde foi professor dos próprios filhos ou dos supracitados Terence Blanchard e Harry Connick Jr. Leccionaria anos depois na Universidade da Virginia e seria o fundador (e também director, durante 12 anos) do departamento de jazz da Universidade de Nova Orleães.

“O meu pai foi um músico e um professor gigante, mas ainda maior enquanto pai”, escreveu Branford Marsalis no comunicado que anunciou ao mundo a morte de Ellis. “Deu tudo o que tinha para fazer de nós o melhor que fosse possível sermos.” Segundo declarações passadas de Wynton, agora citadas no obituário do New York Times, fê-lo sem rigidez, sem mão de ferro: “O meu pai nunca pôs pressão sobre mim. É demasiado cool para essas coisas. A casa podia cair e, enquanto estivesse toda a gente a correr de um lado para o outro, ele continuaria sentado na mesma cadeira.”

As carreiras de quatro dos seis filhos que teve com Delores Ferdinand, falecida em 2017, atestam o sucesso da pedagogia e a qualidade dos ensinamentos. Mboya Marsalis não seguiu qualquer percurso artístico e Ellis Marsalis III é poeta e fotógrafo, mas Wynton Marsalis, trompetista e director artístico da programação de jazz no Lincoln Center, em Nova Iorque, e vencedor do Pulitzer para a música em 1997, o saxofonista Branford Marsalis, o trombonista e produtor Delfayo Marsalis e o baterista e vibrafonista Jason Marsalis são todos nomes respeitados e donos de carreiras celebradas, sobretudo os dois primeiros.

Já veterano, Ellis Marsalis continuava a manifestar o desejo de continuar a aprender e a expandir o seu conhecimento. “Gostaria de entrar num curso de Física para conseguir ter um bom entendimento do universo nessa área. Há cursos de literatura que gostaria de frequentar. Talvez o faça um dia. Não compro a ideia de que as universidades são apenas para jovens”, cita o New York Times. Quanto ao palco e à música, aí não havia lugar a quaisquer dúvidas: eram para toda a vida.

Tão recentemente quanto em Dezembro de 2019, Ellis Marsalis continuava a tocar com regularidade no Snug Harbor, em Nova Orleães, sala onde, segundo a agência Associated Press, actuou semanalmente durante 30 anos, sem interrupções – dois sets de 75 minutos às sexta-feiras. Um professor distinto como o era Ellis Marsalis nunca deixava de ter matéria para dar.

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