Os “recuperados” da covid-19

Margarida, Manuel e Vasco foram infectados pelo SARS-CoV-2 numa altura em que o vírus ainda parecia uma ameaça longínqua para a generalidade dos portugueses. Hoje, integram a lista de recuperados da Direcção-Geral da Saúde.

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Vasco e a namorada cumpriram o isolamento no mesmo quarto. O mecânico de 21 anos, residente na Maia, está oficialmente recuperado, ela não. No Porto, a bancária Margarida Sobral, de 48 anos, foi das primeiras a mergulhar no inferno do confinamento doméstico, distanciando-se da filha de nove anos à força de máscaras e de litros de lixívia, numa altura em que o cenário com que nos confrontamos (escolas fechadas, milhares de pessoas em casa, deslocações controladas, eventos cancelados, moratórias no pagamento das hipotecas e das rendas…) parecia admissível, sim, mas só em filmes. “Sentia-me uma leprosa. Foi horrível”, recorda. Mais de um mês volvido, quer ela quer o marido, que ficou internado por 16 dias no Hospital de São João, estão oficialmente recuperados.

Não muito longe, no Marco de Canaveses, Manuel Monteiro Moreira, um diabético de 65 anos, também viu os últimos dois testes darem negativo para o SARS-CoV-2, depois de dois dias internado e de várias semanas confinado a uma parte reservada da casa. Aguarda agora “luz verde” para voltar a pegar nos netos ao colo. Estes são os testemunhos de três sobreviventes da covid-19, a doença provocada pelo vírus que, depois de ter sido notificado pela primeira vez em Wuhan na China, no dia 31 de Dezembro de 2019, soma agora perto de 34 mil mortos e mais de 720 mil infectados no mundo. Em Portugal, com 187 mortes e 8251 casos confirmados, a lista de recuperados, actualizada diariamente pela Direcção-Geral da Saúde, estacionou nas 43 pessoas, embora os especialistas acreditem ser muitos mais. Trata-se, como referiu nesta terça-feira o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, de “uma doença de convalescença lenta” e, por outro lado, “a maior parte das pessoas são tratadas em casa, o que pode originar um hiato maior no reconhecimento da recuperação que é aferida por dois testes negativos em 24 horas”.

“​Sentia-me uma leprosa. Foi horrível”​

Margarida Carmo Sobral, uma bancária de 48 anos, ficou infectada juntamente com o marido, no final de Fevereiro, numa altura em que, para a maioria dos portugueses, o coronavírus parecia uma ameaça distante. Enquanto o resto do país pautava o seu quotidiano pelas rotinas de sempre, já este casal do Porto se tinha abstido de visitar os pais, de frequentar o ginásio e de cumprimentar os colegas com toques e beijos. “Mantivemos algum distanciamento mesmo antes de sabermos que tínhamos a doença porque sabíamos que alguma coisa não estava bem. E hoje fico contente por saber que nem eu nem o meu marido contagiámos outras pessoas”.

Margarida tem as datas bem gravadas na sua cabeça. No dia 22 de Fevereiro, o marido tinha ido correr um com amigo italiano que chegara de Bergamo. No dia 26, estranhou as dores musculares que teimavam em não desaparecer. Quando ligou para a Linha SNS 24, porém, foi descartado da lista de casos suspeitos porque não tinha nem tosse, nem hemorragias, nem falta de ar. “Inicialmente, a linha de saúde não estava preparada para identificar estes casos. E, efectivamente, o meu marido só desenvolveu essa sintomatologia tida como suspeita na fase posterior da doença”. Quando, no dia 4 de Março, foi referenciado para fazer um teste, o resultado foi positivo e o internamento imediato. “Ligaram-me do Hospital de São João às quatro da manhã e fui levá-lo de carro. Acabou por ficar internado durante 16 dias.”

Estava já o marido internado quando, no dia 8 de Março, Margarida, que entretanto deixara de trabalhar e estava em casa a cuidar da filha de nove anos, estranhou aquelas que terão sido as primeiras dores de ouvidos da sua vida. O teste feito no dia seguinte mostraria que estava também infectada. “O meu marido teve dores musculares, que nunca tinha, e eu senti dores de ouvidos, que também não me lembro de sentir, ou seja, sintomas que inicialmente não estavam associados a este vírus”, sublinha Margarida, para aconselhar assim quem receie estar infectado que policie o seu próprio corpo e “esteja atento a sintomas que não lhes são normais”.

Confirmado o diagnóstico de ambos, enquanto o marido lutava no hospital contra uma infecção que teimava em não regredir, Margarida iniciou o seu próprio inferno doméstico. “Como os meus sintomas eram mais leves e não podia deixar a minha filha aos cuidados dos avós para não os pôr em risco, fui tratada em casa. O que me tranquilizava era saber que, se precisasse, tinha os profissionais do hospital sempre disponíveis. Foram extraordinários. Telefonavam-me todos os dias e, com isso, transmitiram-me muita serenidade, o que foi fundamental porque fomos dos primeiros casos em Portugal e, na altura, era tudo muito assustador”. Não fosse isso, a bancária garante que lhe teria sido muito mais difícil ocultar o medo e a angústia que a atormentavam da filha de nove anos. “Não podia haver nem beijinhos nem abraços, na altura em que ela mais precisava porque tinha o pai internado no hospital. Foi preciso uma imensa disciplina para não me aproximar muito dela e não me descuidar com a máscara. Diariamente, a minha casa de banho e a dela eram desinfectadas com lixívia. Sentia-me uma leprosa, foi horrível.”

Para ir auscultando os sentimentos da filha, Margarida deixou o seu quarto e passou a dormir no escritório, mais próximo do quarto da filha. “À noite, quando estávamos já as duas deitadas, perguntava-lhe: ‘Então quantos dias achas que faltam para o pai vir para casa?’ Para ela ir deitando cá para fora o que sentia. Tentei manter sempre este diálogo, sem esconder nada mas com a preocupação de lhe transmitir alguma serenidade.”

Apesar de quer ela quer o marido estarem oficialmente recuperados — os últimos testes de Margarida, feitos nos dias 23 e 25 de Março deram ambos negativos —, a quarentena e a interdição dos abraços deverá manter-se por mais alguns dias. “O pior já passou, embora nada nos garanta que tenhamos ficado imunes”, explica, para concluir que “o mais importante que se pode fazer para garantir que, em vez de um pico de infecções, teremos o tal planalto de que se fala nas notícias é ficar em casa”. Sem a população confinada ao reduto doméstico, reforça, “não conseguiremos impedir que aquela curva suba exponencialmente e aconteça aqui o que estamos a ver em Itália e em Espanha”.

“Parecia um prisioneiro de guerra”

Quando esta pandemia recuar, Manuel Monteiro Moreira, um mecânico reformado de 65 anos, a residir no Marco de Canaveses, vai voltar a pegar no neto João ao colo e pô-lo, como costumava, em frente ao volante do carro para o “ensinar a conduzir”. “É das coisas que mais me custam: não poder tocar-lhes e estar com eles.” Por estes dias, e apesar de os últimos dois testes laboratoriais que fez terem dado negativo, o sexagenário continua confinado numa parte da casa e a mulher noutra, sem poderem partilhar as refeições com a filha, os netos e o genro que com eles vivem. “Estou à espera que o delegado de saúde me ligue”, conta. E, enquanto esse telefonema não chegar, o contacto familiar vai continuar a fazer-se à distância, no jardim, nomeadamente nos momentos em que Manuel sai para “cortar a erva” e vê os netos ao longe, a brincar e a andar de bicicleta, ou via telefone. “A minha filha é infecciologista e não me deixa tocar em nada”, diz, em jeito de brincadeira, agora que já passou aquele que foi um dos maiores sustos da sua vida.

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Manuel Moreira

“Eu, febre nunca tive, tossia volta e meia e espirrava muito. Um dia acordo de noite na cama com uma dor no peito e um bocadinho de falta de ar. Foi rápido mas assustou-me. Como a minha filha é médica e tinha tido contacto com infectados, fomos, eu a minha mulher num carro e ela noutro, fazer o teste ao Hospital de São João, no Porto.” Quando, no dia seguinte, a filha lhe comunica que o seu teste tinha dado positivo, Manuel Moreira, que além de estatisticamente idoso é diabético, julgou que morria. “Acreditei que ia para o hospital e já não voltava. Até me despedi da minha mulher e disse aos meus filhos que cuidassem dela”, recorda, para sublinhar que o cenário com que se deparou no hospital não o tranquilizou. “Os médicos e enfermeiros entravam no quarto e pareciam extraterrestres. Eles têm um cuidado extremo com os infectados. Comecei a achar que o que tinha era de facto muito perigoso e, quando tive de sair do quarto para ir fazer uma TAC, tive de ir no corredor sem tocar em nada e escoltado com dois homens à frente e dois trás: parecia um prisioneiro de guerra.”

Descontada a parafernália em volta, Manuel Monteiro Moreira garante que em termos físicos não sentiu “praticamente nada”. Esteve ainda assim internado dois dias, saindo com a recomendação de ficar confinado a uma zona da casa. “Antes de me darem alta, fizeram um exame que deu negativo e, já em casa, vieram fazer-me outro teste que também deu negativo.” A quarentena manteve-se ainda assim até hoje, o que o leva a afirmar que, mais do que os sintomas da doença, o que lhe dói no corpo é o isolamento.

“Àquilo que vejo, e ouço os médicos dizer, eu fui um caso raro de recuperação rápida, embora seja verdade que eu podia estar infectado há muito mais tempo porque a tosse já vinha de há algum tempo”, sublinha, dizendo-se satisfeito por a mulher, que está desde a mesma altura fechada num quarto, no andar de cima da casa, em isolamento profiláctico, não ter sido infectada. “Agora falamos muito mas é ao telefone. Ou então quando eu vou ao quintal e ela está na varanda do quarto”, relata. Principal efeito secundário da doença? “Já não me preocupo tanto. Costumava preocupar-me muito com as coisas da oficina [mecânica], queria fazer tudo ao mesmo tempo, o que deixava as pessoas irritadas, e isto fez-me parar para pensar no que realmente importa.” Como “ensinar” o neto João a conduzir.

“Não tinha dores nem estava em sofrimento”

Nem assustado nem particularmente doente. Quando, no início de Março, Vasco Lopes começou a sentir-se constipado, os ecos da covid-19 ainda soavam longe, pelo que o mecânico de motociclos, de 21 anos e residente no concelho da Maia, fez o que faria numa situação normal: “Tinha algumas dores de garganta, fiquei sem paladar e sem olfacto. Na clínica examinaram-me e, como não viram nada de problemático, mandaram-me para casa com a indicação de que devia tomar Ben-u-ron, se tivesse febre.”

Não lhe colocaram máscara nem os profissionais de saúde que o examinaram a tinham. No dia seguinte, porém, soube que uma colega de turma da namorada, na Escola Secundária da Maia, tinha sido infectada pelo SARS-CoV-2. “Nesse mesmo dia, eu e a minha namorada fomos contactados por uma enfermeira que me mandou ir fazer o teste ao Hospital de São João. Fomos no dia seguinte — creio que no dia 7 de Março — e já lá estava montada a tenda. Um dia depois, recebemos por telefone a notícia de que estávamos infectados. Fiquei um pouco assustado, mas até mais pelo receio de, sem querer, ter contaminado outros.”

Enquanto Vasco e a namorada se preparavam para cumprir quarentena fechados no mesmo quarto, a clínica por onde o mecânico passara fechou as portas, por se ter percebido que, além de Vasco, mais infectados tinham passado por lá. E, enquanto os números dos doentes iam escalando um pouco por todo o país, o casal entreteve-se como pôde, com ajuda de séries, televisão e jogos de computador. No seu caso, Vasco Lopes mal precisou de recorrer ao paracetamol. “Não tinha dores nem estava em sofrimento. Os meus pais é que estavam preocupados por causa dos meus precedentes de problemas pulmonares”, recua.

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Vasco Lopes, 21 anos DR

Ao fim de pouco mais de uma semana, Vasco e a namorada receberam em casa a visita de duas enfermeiras para serem novamente testados. “Aconselharam-nos a continuarmos isolados e, para garantirem que o resultado era fiável, voltaram a fazer-nos novos testes passados dois ou três dias. No segundo teste, o meu voltou a dar negativo.” A alegria que sentiu ficou, porém, contaminada pela notícia de que, no caso da namorada, os testes deram positivo. “Foi aí que tivemos de nos separar, por conselho médico. A minha preocupação agora é a minha namorada, que está à espera de poder ser observada porque entretanto ficou com diarreia e cuspiu um pouco de sangue.”

Não fosse a preocupação com o estado de saúde da namorada e o confinamento a que foi forçado, a covid-19 teria passado pela vida de Vasco como mais uma constipação. “Há coisas piores do que ficar fechado num quarto, não creio que daí, além da memória que vai ficar, possa ficar nenhum trauma”, relativiza. De resto, vai manter-se por casa, até porque a oficina em que trabalha fechou. “Os fornecedores estão todos fechados e não se conseguem arranjar as peças que são precisas.” Dizendo-se convencido de que a vida voltará a ser o que era, Vasco anseia por poder retomar as rotinas que, até então, não valorizava por lhe parecerem dado adquirido: “Ir à praia, sair para tomar um café, comer fora. As coisas normais a que não se dava muito valor e a que só poderemos voltar quando houver uma vacina.”

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