“Passo a noite a pensar na minha filha quando ela está de serviço, mas não lhe conto nada disto”

A covid-19 trouxe uma preocupação acrescida a todas as famílias, mas quando um dos membros do núcleo familiar sai diariamente para trabalhar num hospital o sentimento de impotência cresce. Medo e orgulho misturam-se no dia-a-dia de quem espera que eles regressem a casa a salvo.

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Alguns médicos e enfermeiros optam por não contactar com os familiares, para evitar o risco de os contagiar Paulo Pimenta

A decisão foi rápida, depois de uma curta reunião familiar. Dulce Oliveira, de 67 anos, sabe que a idade a coloca nos grupos de risco da covid-19, mas com uma filha médica, o genro a ter de sair de casa diariamente para trabalhar, e duas netas de um e três anos, não pensou duas vezes: “Decidi que iria ajudar a minha filha e tomar conta das minhas netas. Todos os dias vou ter com elas. Tenho o coração nas mãos. Apesar de não ter nenhuma doença associada sei que corro riscos, mas a decisão é minha. A minha filha não pode gerir a vida dela, como médica com certeza que iria fazer o que está a fazer. Precisamos deles, dos médicos, dos enfermeiros, dos auxiliares, mais do que nunca. E eu tinha de ajudar.”

A mãe da anestesista do Hospital de S. João, no Porto, repete muitas vezes esta frase: “A decisão é minha.” Para que não restem dúvidas que conhece os riscos e decidiu assumi-los. Toma todas as precauções para que a doença não a surpreenda — não partilha o quarto nem a casa-de-banho com o marido de 70 anos, mais susceptível, e é outro filho que lhe trata das compras, para que não tenha de ir ao supermercado. Cumpre todas as recomendações da Direcção-Geral de Saúde sobre os cuidados de higiene e distanciamento social, mas ninguém consegue convencê-la a não prestar apoio às netas. E ela deixa já um aviso: “Se a minha filha chegar a uma situação em que ache melhor não ir a casa, tomarei a decisão de me mudar para casa dela. Sei que está com uma vida muito complicada e, se ao fim de um dia péssimo no hospital, com tantas preocupações, ainda tivesse de juntar a preocupação com o cuidado das filhas, ia ser muito pior.”

Dulce Oliveira tenta ajudar de outras formas. Pergunta à filha como correu o dia de trabalho, mas não insiste. E faz um esforço para a distrair. “Digo-lhe que isto há-de passar, para ter paciência, cuidado e para se proteger. E que cá estamos todos para ultrapassar isto. E se vejo algum vídeo engraçado, até lhe conto”, diz, numa conversa pelo telefone.

Mas nem os vídeos ocultam a preocupação pelo trabalho diário da filha. “É muito angustiante, muito. As noites são complicadas, sempre a pensar, sobretudo quando ela está de serviço. Mas não lhe conto isto. Não conto à minha filha das noites mal dormidas”, diz.

João Vermelho, de 15 anos, garante que não se preocupa muito, apesar de os pais serem ambos enfermeiros no Hospital Eduardo Santos Silva, em Vila Nova de Gaia. Ambos estão em serviços ligados a Cardiologia, mas, neste momento, nenhum serviço está imune à possibilidade de estar a tratar um doente que transporte o novo coronavíarus SARS-Cov-2, mesmo sem o saber. “As pessoas deviam mudar de cor ao ser contaminadas. Corremos o risco de ter um doente com enfarte e dentro do serviço começar a desenvolver sintomas [da covid-19]. Já aconteceu”, diz a enfermeira Ana Vermelho, mãe de João.

Tanto ela como o marido continuam a ir para casa no final de cada turno, mas o contacto entre os pais e os dois filhos (João tem um irmão de 19 anos) foi reduzido ao mínimo. A sala passou o ser o domínio da enfermeira, que dorme ali, enquanto os filhos e o marido ficam em cada um dos quartos da casa. Ela confecciona as refeições, mas estas são tomadas em separado, e cada um coloca a louça suja na máquina. Quem chega da rua — João, não, ele não tem saído de todo, garante — tem desinfectante à entrada, despe-se, descalça-se e leva tudo para a lavandaria, onde está a roupa de andar por casa. Os tapetes foram retirados, a toalha do banho e a fronha da almofada são mudadas e lavadas diariamente. “Os meus pais têm-me informado bem do que está a acontecer e não tem havido grande problema, porque alterámos várias coisas cá em casa que fazem com que o perigo diminua. Tenho amigos que perguntam, que se preocupam por mim e por eles, mas eu conto-lhes o que se passa e digo-lhes para não se preocuparem. Acho que não vou ter problemas”, diz.

Há vontades que ficam por cumprir — um abraço, um carinho da mãe, diz — e as saudades dos amigos, da família e da casa de férias, perto dos avós. “Espero que isto acabe o mais rápido possível, para que nos possamos voltar a ver todos. Mas percebo que estamos num momento em que temos de parar para pensar, e que estas medidas são para me ajudar”, garante.

Orgulho e receio

Na casa de Joana Mendes, de 43 anos, há muitos sentimentos misturados. “Há o orgulho por ela estar na linha da frente, mas muito receio. Não tanto que ela fique contaminada, mas por ela estar sozinha”, diz. “Ela” é a irmã mais velha de Joana, enfermeira no Hospital de S. João. Também ela não trabalha num serviço directamente ligado à covid-19 - está em Psiquiatria — mas também por ali já apareceu um caso de um doente cujo teste acabaria por dar positivo.

Para evitar qualquer risco de contágio com os mais próximos, a enfermeira optou por ficar sozinha em casa. O filho de 19 anos foi morar temporariamente com os avós. É este isolamento voluntário da irmã que mais preocupa Joana. “Ela não está connosco, é muito complicado não poder estar junto das pessoas. Se ficar infectada, está sozinha... Agora passa aqui de carro, para nos ver. Não saímos de casa. O meu sobrinho desce e fala com ela pelo vidro do carro. Estamos com receio, claro. E não contamos tudo aos meus pais, para não se preocuparem ainda mais”, diz.

A irmã de Luísa Trindade, 46 anos, também é enfermeira. Trabalha no Hospital de Santo António, no Porto, e também ela optou por não ver a família. O filho, de 13 anos e asmático, está a viver com o pai durante este período. “Estamos a viver estes dias com bastante preocupação, que cresce pelo facto de a minha irmã ter o trabalho que tem. É um dia de cada vez, com bastante incerteza, mas também confiança. Falamos bastante, ela tem de desabafar e eu estou aqui para ouvir”, diz a funcionária administrativa.

De momento, a irmã de Luísa está de quarentena, depois de ter tido um contacto “desprotegido” com um colega cujo teste viria a dar positivo. “Desprotegido” não quer dizer que não tinha equipamento de protecção, mas apenas que não era o mais indicado nos casos da covid-19. Sozinha em casa, engana as saudades com as novas tecnologias — está grata por há um par de anos, durante uma viagem à Índia, ter insistido com os pais para que aprendessem a utilizá-las. Com a irmã o contacto, ainda que distante, tem sido mais intenso.

“Geralmente, espero que ela fale. Até porque o trabalho dela é muito desgastante e talvez, como forma de se proteger, ela não fala muito. Mas esta semana tem sido um bocadinho diferente. Tem falado mais. Eu ouço, sem tentar fazer perguntas. É tão complicado e difícil... Tento desviar um pouco a conversa, para não estarmos sempre a falar da mesma coisa. Falo em experiências positivas para contrabalançar e tento olhar sempre para a parte positiva, com esperança, tentando que ela não fique só a pensar naquilo”, diz Luísa. É ela também quem deixa à porta de casa os bens essenciais de que a irmã precisa, desde que entrou em quarentena.

Lá em casa, como na da maioria dos portugueses, os almoços de família ao fim-de-semana foram interrompidos. O aniversário de Luísa passou sem os habituais festejos e o tempo é de aguardar que tudo passe. Na esperança de que algo de bom saia daqui. “O nosso Serviço Nacional de Saúde é tão pouco valorizado. Foi necessário haver um desastre como este para dar valor aos médicos e enfermeiros, que estão sempre disponíveis”, diz.

A falta de reconhecimento pelo trabalho desenvolvido pelos profissionais também é algo que, por estes dias, anda a revoltar ainda mais Adriano Tavares, de 39 anos. A mulher é enfermeira no Centro Materno-Infantil do Norte (CMIN), no Porto, e os dias fechado em casa, a tomar conta dos filhos de quatro e sete anos, só ficam mais difíceis perante a percepção de que as coisas podiam estar a correr melhor. “Eu sou uma pessoa racional. Não ficaria mais preocupado se tivessem as condições ideais para trabalhar, mas não têm. E isso é o que me preocupa. Temos filhos pequenos e só há poucos dias é que passaram a ter equipamentos de protecção individual, com batas descartáveis e até às máscaras, que usam mais tempo do que deveriam”, diz.

A mulher continua a ir para casa, cumprindo os rituais de higiene recomendados. Tira o calçado, lava as mãos, desinfecta-se. Só depois retoma “a vida normal”. Com um pouco mais de agitação do que o costume. “Nesta fase é inevitável que acabe por trazer o stress do trabalho para casa, porque estão ainda mais sobrecarregados do que o habitual.” Tem sido difícil, admite o empresário, que só consegue dedicar-se ao trabalho quando a mulher o substitui no cuidado das crianças, depois de mais um turno.

Na casa de Paulo Jorge Vieira, 46 anos, e do companheiro, médico anestesista num hospital da região da Grande Lisboa, a realidade mudou há cerca de uma semana. Depois de vários dias após o início da crise do novo coronavírus em que continuaram a viver juntos, mas deixando de partilhar o quarto ou a casa-de-banho, concluíram que era melhor aumentar o distanciamento. “É muito sui generis. Estou a trabalhar em casa e estou sozinho e ele está a trabalhar e, quando não está, está numa casa sozinho”, diz. 

A decisão foi muito pensada, porque Paulo é saudável, mas teve uma pneumonia há dois anos, e o companheiro trabalha numa das novas unidades de cuidados intensivos do hospital, criadas para receber doentes com covid-19. Encontraram uma casa próxima do lugar onde vivem e têm-se visto com alguma distância. Os dias não são fáceis e Paulo Jorge Vieira repete o que dizem outros familiares de profissionais de saúde: “É preciso ouvir muito, deixá-los desabafar. Mas também trocamos muitas mensagens com brincadeiras. É importante conseguirmos arrancar um sorriso ou uma gargalhada numa situação mais difícil como esta.”

O pior, teme, virá depois. Quando tudo acalmar e houver tempo para pensar e fazer o balanço do que se passou. “Temos centenas de homens e mulheres nestes espaços que não vão sair deste momento sem feridas psicológicas e físicas. Eu não gosto da metáfora da guerra aplicada a esta situação, mas ele tem formação de emergência médica em teatros de guerra e a forma como o trabalho está a decorrer é um bocadinho como isso, de facto”, conta, ao telefone. 

E a questão não se porá apenas com médicos e enfermeiros, mas com todos os que trabalham nos hospitais, desde os seguranças aos funcionários de limpeza, realça. “O anestesista pode estar no local da frente, mas a pessoa que está a limpar o chão depois da maca passar está a fazer também um trabalho essencial. Quero acreditar que quando isto tudo acabar, algo vá mudar, para melhor”, diz.

Consciente que as preocupações não vão desaparecer nas próximas semanas ou meses, Dulce Oliveira já tem planos para quando a crise passar e puder regressar à normalidade. E o plano passa por gozar a prenda do último Natal. “Ofereci a cada um dos meus filhos e também a nós um fim-de-semana fora. Estava marcado para 6 de Junho, mas não poderá ser nessa altura, certamente. Só se corresse tudo muito, muito bem. Vamos adiar e quando tivermos oportunidade vamos estar todos juntos e abraçarmo-nos e beijarmo-nos. Essa é a minha prioridade. E espero que possamos estar todos”, diz.

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