O coronavírus e a batalha da espécie humana

Nestes tempos sombrios gostava de falar de esperança mas baseada no conhecimento. E também de esperança na espécie humana, na nossa criatividade, na nossa capacidade de dar a volta às situações mais difíceis.

Não vamos ter ilusões. A tragédia global provocada pela pandemia do coronavírus é séria e é um dos maiores desafios já colocados à sobrevivência da espécie humana. Parece uma ironia do destino. Há alguns meses atrás estávamos preocupados, e bem, porque a espécie humana, no seu afã de dominar e subjugar a natureza, estava a destruí-la e a caminhar para o apocalipse climático. De repente é a própria espécie humana que é ameaçada pela natureza, na forma de um vírus microscópico, invisível e letal.

A realidade é mais complexa do que todas as nossas frágeis teorias e fundamentalismos. A situação é muito difícil mas é preciso termos esperança. Antes de falar de esperança é bom termos a noção do desafio. Nesta altura, os países confrontam-se com um dilema e há duas estratégias em curso. O modelo epidemiológico do Imperial College, da Universidade de Londres, é crucial para fazermos esta análise. É apenas um modelo e sabemos que os modelos, mesmo os mais avançados do ponto de vista científico, são apenas pálidas imagens da realidade.

O modelo testa as duas estratégias: a primeira, que é a da contenção, seguida na China, Coreia do Sul, Singapura e UE, incluindo Portugal. Significa actuar o mais cedo possível, confinar as pessoas à sua residência, evitar os contactos e tentar achatar a curva que mede o ritmo de propagação do vírus. Esta estratégia funcionou nos países asiáticos. Qual é o inconveniente? Sustém o contágio mas não erradica o vírus. O número de mortes é mais baixo mas quando a quarentena termina o vírus pode voltar e novas quarentenas podem ser necessárias. Isto pode ser insustentável do ponto de vista social e económico.

A outra estratégia é a do Reino Unido, Suécia, EUA e Israel. É uma estratégia que visa criar a imunidade de grupo, isto é, deixar o vírus propagar-se até grande parte da população estar infectada. Isto deve ser feito isolando e protegendo os grupos de risco como os idosos e os doentes. Qual é o inconveniente? O número de mortos pode ser brutal até se criar a imunidade de grupo. O modelo do Imperial College estima que, com esta estratégia, nos EUA podem morrer dois milhões de pessoas e no Reino Unido 500 mil. O preço a pagar é demasiado alto. E isto confronta os governos com grandes dilemas nas decisões que têm de tomar. Por isso, este não é o tempo de atirar pedras. Este é o tempo de nos unirmos à volta das autoridades e das instituições, seguirmos as directivas e as regras terapêuticas, ter em conta que as estratégias de combate não são estanques e podem ser híbridas, que todos estão a aprender com todos e que, no fim, as melhores decisões vão prevalecer para salvar o maior número de vidas.

Nestes tempos sombrios gostava de falar de esperança mas baseada no conhecimento. É a esperança na ciência que muitos desvalorizaram e atacaram ao longo dos últimos anos. O que nos vai salvar não é o obscurantismo, não é a feitiçaria, não é a sorte, não são as seitas que pregam contra as vacinas. O que nos vai salvar é o trabalho denodado dos profissionais de saúde e é o trabalho dos cientistas e dos investigadores para criarem uma vacina. A ciência, a investigação e o conhecimento vão sair mais reforçados desta crise. Vai demorar tempo mas os sinais da investigação que vêm do Japão, da China, da Alemanha e dos EUA são encorajadores. É também a esperança na espécie humana, na nossa criatividade, na nossa capacidade de dar a volta às situações mais difíceis. Quando as catástrofes aparecem elas fazem emergir o melhor de nós. Isso aconteceu muitas vezes na história. Nós temos muitos defeitos. Somos capazes do melhor e do pior. Mas quando toca a lutar pela sobrevivência mobilizamos tudo o que nos distingue, como a inteligência, e é assim que passamos as maiores tribulações. 

Nós surgimos há cerca de 200.000 anos atrás neste planeta extraordinário que é a nossa casa. O planeta já tinha 4500 milhões de anos de história quando nós aparecemos. O nosso percurso é uma fracção ínfima da vida do planeta. Nós somos os acidentes gloriosos de um processo imprevisível, como disse um dia o biólogo Stephen Jay Gould. Quando os nossos antepassados emergiram nas savanas africanas, e pronunciaram pela primeira vez a primeira palavra, começaram a comunicar uns com os outros e a cooperarem entre si. Essa cooperação foi decisiva para se defenderem com sucesso dos perigos imensos que os rodeavam. E eles sobreviveram porque, sem o saberem, transportavam consigo aquela que é a mais poderosa máquina da criação: o cérebro humano. Ele ajudou-os a ler o mundo, a decifrar os sinais, a detectar o perigo, a construir a cooperação que é a base da vida das comunidades. A descoberta da palavra mudou tudo e com ela veio também a capacidade de efabulação da nossa espécie, que é extraordinária.

Os nossos antepassados resistiram a tudo: aos ataques das feras, aos sustos da natureza, aos ciclos climáticos, à devastação das colheitas, às epidemias mortíferas, às erupções vulcânicas, aos terramotos, às quedas de meteoritos e asteróides. Nessa admirável luta milenar, em cada dia que chegava ao fim, eles reuniam-se à volta da fogueira e contavam as histórias que ainda hoje são o património matricial da nossa espécie. Eles inventaram o fogo, as ferramentas, a vida nas primeiras cavernas e nas primeiras comunidades. Eles inventaram as redes sociais de cooperação. Eles inventaram os primeiros poemas, as primeiras pinturas e transformaram a arte em mais uma ferramenta para a sobrevivência. E há 75.000 anos atrás a espécie humana passou por uma das maiores ameaças à sua existência: a erupção brutal do vulcão Toba, na Indonésia. Esta foi a maior explosão vulcânica até hoje registada na Terra. Biliões de metros cúbicos de cinzas vulcânicas foram expelidas para a atmosfera. O Sol deixou de se ver durante dias a fio. O planeta entrou numa espécie de Inverno vulcânico. As cadeias alimentares foram destruídas. Muitas espécies foram extintas. Os nossos antepassados sobreviveram a esta catástrofe indizível. No fim, os sobreviventes, estima-se hoje, foram cerca de 2000. Cabiam num hotel moderno. E nós somos todos filhos dos 2000.

É por isso que o ADN de dois seres humanos, sejam eles quais forem, é praticamente idêntico. Nenhuma outra espécie tem este grau de similaridade no seu ADN e isto torna ainda mais ridículas as teorias racistas, a xenofobia, a exclusão do outro. Só há uma raça: a raça humana. Estes sobreviventes resistiram a tudo, incluindo às glaciações que fizeram baixar a temperatura do planeta de forma terrível. Esta é uma grande lição. E quando, há cerca de 10.000 anos atrás, a temperatura subiu e as condições ficaram mais favoráveis, eles foram capazes de erguer grandes civilizações, da Mesopotâmia à Pérsia, da Índia à China, da Europa à África e às Américas. Neste caminho a espécie humana foi movida pela curiosidade, pelo espanto, que, como disse Platão, é o motor do conhecimento. Ontem como hoje ele vai contribuir para a nossa sobrevivência.

Na terceira parte do Gulliver, o escritor Jonathan Swift descreve uma estirpe de homens decrépitos e envelhecidos, acomodados e entregues a débeis apetites, falhos de vontade, incapazes de comunicar e incapazes de ler. Este parece um retrato premonitório das nossas sociedades antes do coronavírus: frívolas, superficiais, egoístas, monossilábicas, mutiladas, zombies em perpétuo zapping. Mas esta crise vai obrigar-nos a lutar pela sobrevivência, a reinventar a vontade e a atenção, a redescobrir a cooperação por objectivos comuns. Vai obrigar-nos a ler, a estudar e a pensar. Vai, porventura, criar novos paradigmas políticos, económicos e sociais. Como dizia Swift: “Ser é ser tudo.” Esta crise vai reensinar-nos a ser tudo outra vez.

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