Para uma Cultura pandémica: as grandes questões

A Arte tem esse condão de criar momentos de verdade, de ambiguidade, de força — de liberdade na maior das precariedades, como advogava o cubano Carlos Celdran.

Se o novo coronavírus mandou para casa, sem pedir licença, artistas e demais profissionais do sector cultural e criativo, que se aproveite activamente este hiato questionador para preparar o futuro que vem já aí. Mais do que reagir urgentemente ao medo e ao imprevisível, que se vislumbre no momento presente, sobretudo, uma luminosa janela de oportunidade para Estado e agentes culturais ganharem tempo e silêncio para encetar uma renovadora etapa de pensamento e acção — para (re)construir criticamente “a partir do fundamento” a casa térrea (de que falava Sophia de Mello Breyner).

Um dos maiores artistas alemães do século XX ligado à performance art, Joseph Beuys, costumava dizer que a Arte era a ciência da liberdade e que o seu foco maior consistia na desformatação, desconstrução, libertação das pessoas. Hoje vivemos tempos incertos e desafiantes, em que nos pedem distância, recolhimento, resistência. Não obstante, gosto de acreditar, com Valéry, que há momentos infelizes em que também a solidão e o silêncio se tornam meios de liberdade. E que estamos perante uma significante oportunidade de repensar a vida do espírito, de revalorizar a “invisível” e subtil poesia dos dias, de auscultar as epifanias reveladoras que a Arte e a Cultura fazem emergir — mas agora imbuídos todos de um forçado e exigente tempo longo-lento por oposição às amarras do automatismo, da desconexão, da velocidade, da distracção, da indiferença relativamente ao precioso “espaço [vazio] sublime e patético” entre as magníficas árvores, como escreveu Rilke num pensamento tão certeiro quanto intemporal.

Ao observar as múltiplas repercussões desta crise epidémica na área cultural em Portugal, vários tópicos afiguram-se essenciais ao reflectir em particular sobre o campo das artes performativas. Segue-se uma deambulação panorâmica e crítica pelos mesmos.

A consequência mais óbvia e imediata: o tremendo impacto negativo, a nível criativo e económico, que esta pandemia está e vai ter no meio artístico (incluindo aqui também, numa perspectiva transversal, produtores, técnicos, agentes e outros ofícios do universo cultural), a qual assume contornos ainda mais preocupantes junto de criadores, intérpretes e outros profissionais fora da esfera do mainstream/menos mediáticos, bem como de estruturas com organizações de pequena-média dimensão, menos musculadas e sem apoio/financiamento público regular ou não.

Um parênteses: mais de 130.000 pessoas trabalhavam na área cultural em Portugal em 2018 (última estatística oficial conhecida do INE), desde as artes do espectáculo, passando pela literatura, artes visuais, meio editorial, arquitectura, fotografia, media ou ensino, incluindo ainda os trabalhadores da função pública aos níveis central, regional e local. Já sabemos há muito, por diversas vias, que a Cultura é geradora de emprego e riqueza, e que constitui um sector relevante da actividade nacional com impacto em vários domínios. E se dúvidas ainda houvesse (junto de alguns centros de decisão política?), esta pandemia só veio confirmar essa mesma inescapável realidade atendendo aos reflexos registados em inúmeros contextos da vida nacional ligados directa e indirectamente à Cultura e às Artes.

Surge agora a necessidade pragmática de os espaços de apresentação de artes performativas (dos teatros nacionais aos auditórios municipais, bem como dos espaços ligados a colectivos artísticos ou a associações culturais) terem de repensar e reformular substancialmente a sua programação, e isto sem uma ideia concreta, a curto-médio prazo, sobre o futuro no que concerne, por exemplo, à recalendarização de vários espectáculos (agora cancelados) ainda para este ano civil. Isto quando em muitos casos o segundo semestre já se encontrava praticamente desenhado e preenchido em termos de agenda artística, com o que isso agora implicará de maior volume de propostas a encaixar nas grelhas ainda em 2020, gerando um previsível overflow programático nos próximos tempos, com inevitáveis consequências pouco positivas em vários planos (do comunicacional à adesão de público, e não só).

Aliás, é preciso notar neste passo — e isto tem de ser afirmado com frontalidade — que em muitas situações não é nem vai ser manifestamente possível nem exequível, do ponto de vista prático, remarcar ainda para o ano de 2020 todos os espectáculos que estão a ser cancelados, tal como vários agentes culturais têm vindo a preconizar. E isto não se deve apenas ao já adiantado preenchimento programático, pré-coronavírus, dos calendários de muitas salas de espetáculo mormente ligadas às realidades municipais, mas também, e em primeiro lugar, à própria imprevisibilidade relativamente à duração maior ou menor desta conjuntura geral, o que pode implicar que, eventualmente — esperamos obviamente que não, mantendo aqui um optimismo prudente —, os próprios espetáculos já agendados para o segundo semestre deste ano tenham também de ser parcial (ou totalmente) cancelados/adiados.

Em suma: os vários cenários estão em aberto, mas é essencial ir acautelando possibilidades alternativas. Acima de tudo, é necessária sensatez, flexibilidade e sentido de realidade e responsabilidade, quer da parte das instituições que programam quer do meio artístico, na análise cuidada de cada caso e na identificação de soluções que não serão provavelmente as ideais atendendo à singularidade do presente e — note-se — vindouro panorama, mas sim as possíveis, procurando estas obviamente salvaguardar da melhor forma os interesses de todos os intervenientes envolvidos no processo.

Atente-se também na forma como cada entidade programadora/contratante dos espectáculos agora anulados — em grande medida autarquias —vai gerir a questão, deveras relevante e premente, dos pagamentos dos cachets dos artistas/companhias com os quais tinha compromissos assumidos, quer sejam relativos a compras e acolhimentos quer a co-produções e encomendas. Muitas das propostas integradas nestas duas últimas tipologias já se encontravam em avançado processo criativo e de preparação/pesquisa/ensaio, com estreias marcadas e com despesas para cobrir, sendo fulcral o célere pagamento de uma ou mais tranches dos valores globais acordados.

Sabemos, aliás, que não poucos destes compromissos não têm contratos assinados, sendo o email de confirmação ou o anúncio do espectáculo as únicas evidências da “adjudicação” do espectáculo. Escusado será dizer que a manutenção dos acordos assumidos pelas entidades públicas com o meio artístico é fundamental para a ulterior subsistência do mesmo, bem como o pagamento, desde já, de uma percentagem dos honorários previstos (funcionando como preciosa “almofada” financeira nesta fase crítica), sendo a restante paga na altura da concretização efectiva dos eventos, tudo isto salvaguardado por um devido enquadramento legal.

A estes aspectos acresce a questão do reembolso do valor de bilhetes de espectáculos adiados e cancelados, com especial atenção para aqueles casos em que o promotor externo (produtora/agência do artista) à entidade de acolhimento seria parcial ou totalmente beneficiário das receitas de bilheteira.

Do lado do Estado, nos discursos oficiais fala-se de um momento de “enorme transformação” e da Cultura como um “sector historicamente fragilizado”, e, de facto, as expressões não poderiam ser mais apropriadas. Se, por um lado, espera-se determinação e sentido de responsabilidade do Governo, nomeadamente do Ministério da Cultura, no apoio à sustentabilidade do universo artístico e cultural neste período complexo e exigente, por outro, este cenário veio colocar de forma mais flagrante a nu — há que assumi-lo sem eufemismos — várias fragilidades, lacunas/indefinições e adiamentos há muito conhecidos e debatidos, isto não obstante alguns relevantes esforços e medidas positivas adoptadas nos últimos anos em vários domínios do sector.

A passagem do tempo — esse grande escultor de que falava Yourcenar — conduziu-nos a um presente (mais desigual e frágil do que por vezes aparenta) em que, face ao panorama geral e sectorial conhecido, é legítimo reivindicar junto da administração central uma política cultural mais consistente (nalgumas das suas linhas basilares e respectiva concretização/aplicabilidade), ambiciosa (ao nível dos recursos financeiros, humanos e logísticos alocados à tutela), integrada/transversal (que efectivamente articule de modo eficaz e continuado várias áreas, com especial ênfase para o eixo Cultura-Educação; e que seja realmente extensível a todo o território nacional privilegiando mais as periferias), realista (adequada aos novos tempos e à crescente complexidade-diversidade do circuito cultural) e estabilizada/“descomplicada” (ao nível das orientações, regulamentos e procedimentos formais).

E isso passa, como em qualquer outra área-âncora, por três dimensões essenciais: pensamento estratégico, organização estrutural e operacionalização no terreno. Este panorama tem sido “compensado” de alguma forma —e não obstante haver também nesse universo críticas a apontar e exemplos menos abonatórios a registar — pelo bom desempenho global de muitas dinâmicas culturais municipais dentro e fora das grandes área metropolitanas, como certeiramente apontou Jorge Salgado Simões num artigo publicado há tempos neste mesmo lugar. 

Impõe-se o momento de o Governo dar uma resposta célere a esta pandemia, mas também de encetar paralelamente (e não só por causa do actual momento — friso este aspecto) um caminho mais ambicioso de valorização efectiva das Artes e Cultura em Portugal, reforçando assim a resiliência do sector e superlativizando o seu valor simbólico junto do tecido social.

Não se pode cair na ideia paradoxal de Lampedusa (no Il Gattopardo) de que tudo deve mudar para que tudo fique na mesma. Como já sublinhado no preâmbulo desta reflexão, este tempo pode e deve servir, acima de tudo, para, mais do que “apenas” reagir a um fenómeno conjuntural que tem obviamente um impacto negativo muito relevante, repensar a Cultura em geral e as suas sectorialidades específicas, o papel do Estado, a sua relação com o universo artístico, a articulação com os contextos educativos e os municípios, a produção legislativa sobre espaços performativos, os públicos. Essa abordagem não se pode furtar assim à resolução de algumas problemáticas ligadas aos alicerces do universo artístico e cultural, as quais vão para lá da justa (e tímida?) meta do 1% do Orçamento Geral do Estado para a Cultura. Nesta medida, o tópico do estatuto socioprofissional dos artistas e dos demais profissionais das artes do espectáculo e do audiovisual revela-se absolutamente nuclear não só para regular, estabilizar e fortalecer o sector, como para criar mecanismos e instrumentos que permitam reagir com maior coerência, equidade, adequação, robustez e eficácia inclusive a conjunturas como a actual. Voltarei mais adiante a este ponto.

As respostas começaram, entretanto, a surgir: a Fundação Calouste Gulbenkian, por exemplo, criou um fundo de emergência de 5 milhões de euros para combater o efeito nocivo da covid-19 em cinco frentes: Saúde, Ciência, Sociedade Civil, Educação e Cultura. Nesta última serão apoiados artistas ou entidades de produção artística que viram os seus projectos cancelados, contribuindo assim para o apoio às suas despesas de subsistência.

Paralelamente, está prevista a manutenção e flexibilização dos apoios à criação já concedidos ou em processo de aprovação, permitindo a sua redefinição e recalendarização de modo a garantir a permanência das estruturas de produção afectadas. Vários responsáveis autárquicos a nível nacional também já vieram a público mostrar a sua disponibilidade para apoiar o sector artístico. A própria GDA - Gestão dos Direitos de Autor comunicou que vai antecipar a distribuição de direitos do Audiovisual e de Fonogramas relativos ao ano de 2018, bem como os apoios à edição de obras discográficas.

A tutela, por seu lado, veio anunciar, em boa hora, a adopção de medidas extraordinárias de apoio às Artes sob o mote “Juntos vamos criar Futuro na Cultura”. O Governo tem já disponível uma linha de apoio de emergência orçada em 1 milhão de euros — financiada pelo Fundo de Fomento Cultural — a pensar prioritariamente nos artistas e entidades culturais (ao nível das artes performativas e visuais, e dos cruzamentos disciplinares) que estão “em situação de vulnerabilidade” e que não recebem qualquer apoio financeiro. A este suporte estatal também poderão concorrer as estruturas artísticas consideradas elegíveis e que ficaram de fora dos últimos concursos da DGArtes. Os apoios e compromissos assumidos por esta última entidade com os artistas e companhias que foram seleccionados nos referidos concursos serão igualmente cumpridos, garantiu já a ministra.

Outra intervenção positiva do Estado nesta fase consistiu em salvaguardar a relevante questão do rol imenso de espectáculos cancelados desde finais de Fevereiro e que irá decerto aumentar até ao Verão. Assim, e depois de auscultar o sector, foi publicado o Decreto-Lei n.º10/2020, de 26 de Março, estabelecendo medidas excepcionais e temporárias de resposta à pandemia, com especial atenção para os espectáculos não realizados a partir de 28 de Fevereiro e até ao 90.º dia útil seguinte ao fim do estado de emergência. O diploma postula que todos os espectáculos anulados devam ser reagendados através de acordo entre as partes envolvidas e segundo as regras da boa-fé, devendo essa remarcação ocorrer no prazo máximo de um ano a contar da data inicialmente prevista para a realização dos mesmos. O decreto transmite ainda orientações sobre as questões das devoluções, reembolsos e comissões, bem como ao nível do pagamento de compromissos por parte das entidades públicas promotoras.

O meio artístico e cultural tem vindo a reagir quer saudando as medidas oficiais anunciadas pelo Governo, quer exigindo-lhe que vá mais além em vários pontos atendendo à gravidade e excepcionalidade da situação. É claro que, entre trocas de argumentos, continuam a notar-se resquícios de uma velha “tendência”: a Arte tende a ver o copo meio vazio ao passo que o Poder insiste em vê-lo meio cheio. É essencial, acima de tudo, que as decisões a tomar pela tutela não se confinem à dimensão do apoio financeiro e que persigam também objectivos qualitativos para o sector numa perspectiva que privilegie a visão a médio-longo prazo e não apenas o imediato. Em síntese: que a urgência da resposta estatal a dar às crescentes e múltiplas reivindicações — umas mais legítimas e fundamentadas do que outras, como acontece sempre nestes períodos de crise — dos agentes culturais não esqueça a necessidade de preservar um pensamento crítico e um rumo estratégico, com os olhos postos no futuro, face a este tempo de mudança.

Ainda no que concerne ao apoio governamental — e na linha, aliás, do que a Associação Portuguesa de Promotores de Espectáculos, Festivais e Eventos tem defendido — será importante prever, com a necessária regulamentação, a atribuição de linhas de crédito e/ou micro-crédito às empresas do sector cultural (com condições especiais e planos de pagamento posteriores, de modo faseado), bem como um eventual adiamento ou maior faseamento do pagamento das diversas obrigações fiscais, de modo a dar um urgente balão de oxigénio a um universo muito significativo de estruturas profissionais e agentes culturais em nome individual.

Uma nota agora sobre a influência que a pandemia poderá vir a ter na atracção e adesão de públicos após o término da mesma, nomeadamente no que toca a eventos realizados em contextos com grande concentração de pessoas (com especial relevo para aqueles de natureza indoor e com lugares sentados, pelas razões óbvias), a espectáculos dirigidos mais especificamente a crianças ou a seniores (ou que promovam dinâmicas de grupo de cariz intergeracional), a propostas artísticas implementadas em espaços de lotação muito reduzida, a formatos que impliquem interacção efectiva entre artista(s) e público, a abordagens assentes na participação activa da comunidade e, assim, num trabalho prévio e continuado com a mesma, a acções formativas/workshops nas áreas da dança e movimento, etc.

Se, por um lado, se espera uma atmosfera de acalentado “apetite” e “fome” de Cultura depois de um interregno imprevisível, por outro, a natural retracção e receio em termos de saúde pública de não poucos espectadores poderão aqui e ali falar mais alto e influir nas estatísticas de bilheteira. Nesta linha, é importante identificar, sobretudo numa fase inicial (nos primeiros meses após a tormenta), se e quais serão as medidas concretas a adoptar pelas organizações de eventos e salas de espectáculo de modo a criar condições contextuais controladas, mormente ao nível sanitário e não só (eventualmente redefinindo as lotações e as formas de acesso aos espaços), para que os públicos se sintam mais seguros, não condicionados, descontraídos e que o seu nível de confiança e imersão num ambiente performativo seja gradualmente crescente nessa fase mais ou menos alargada (?) de transição.

Também será preciso ter em conta a disponibilidade económica futura de uma franja considerável de público para os gastos com eventos culturais (em regra, não considerados bens essenciais) após um período muito exigente para a maioria da população, isto atendendo à disparidade entre rendimentos e despesas nos lares/famílias e ao esperado aumento da precariedade laboral e mesmo do desemprego como consequência desta agressiva conjuntura.

Por isso também, veja-se como, face a este panorama, as instituições vão definir e direccionar a sua política de preços e as modalidades/condições de acessibilidade aos programas culturais a apresentar, sendo que a diversificação de estratégias de atracção de público será certamente um grande (e criativo) desafio para todos os que trabalham nesta área. Neste particular, a opção de algumas entidades de assumirem uma eventual gratuitidade no acesso a espectáculos numa fase inicial pós-covid deve, a meu ver, ser gerida com parcimónia e bom senso, sob pena de poder ter vários efeitos contraproducentes e “perversos”, a médio-prazo, junto do público e do meio artístico.

Pode hipoteticamente também instalar-se nesse período pós-pandemia a tendência/“tentação” — que considero perniciosa e redutora em termos de pluralidade e qualidade da oferta cultural a apresentar - para uma maior prevalência (temporária ou não?) da dimensão do entretenimento nas programações emanadas sobretudo dos municípios. Isto como forma de amenizar o ambiente geral, de “compensar” o público, de exorcizar fantasmas recentes no imaginário colectivo, de instaurar (mesmo que não declaradamente) uma leveza “amnésica” e “analgésica” nas agendas culturais, relegando (ainda mais) para segundo plano propostas artísticas mais densas, questionadoras, alternativas, exigentes em termos de recepção e mais imbricadas ao nível da temática, linguagem e tratamento formal.

Por outro lado, algumas instituições públicas poderão, mesmo que não de forma totalmente consciente (por sugestão colectiva), diminuir perigosamente o seu nível de exigência em termos de triagem e selecção de propostas a apresentar. Esta inflexão traduziria, de alguma forma, uma cedência à “pressão” e premente necessidade do meio artístico (com contornos mais acentuados a um nível local/de proximidade) de multiplicar rapidamente as suas oportunidades de trabalho e, assim, obter um célere retorno financeiro.

Esta conjuntura poderá ainda reconfigurar a percepção artística sobre o uso de meios alternativos de apresentação e promoção dos seus trabalhos, gerando um ainda maior incremento do recurso às plataformas digitais — algo que já se verificava, ainda que com uma escala menos intensa e global. A profusão de espectáculos em streaming (com ou sem opção posterior de on-demand) traduz, de facto, uma crescente diversificação dos formatos de difusão das criações e do acesso às mesmas que não passa por um ambiente convencional de espectáculo/performance em que artista e público estão fisicamente presentes. Isto ainda que essa concepção tradicional continue a ter um espaço e um papel vitais — que, quero acreditar, perdurarão no tempo — nos processos quer de interacção entre artista e público quer de recepção por parte do espectador.

Aliás, essa experiência relacional e biunívoca, imersiva e total, reveste-se de particular relevância quando falamos de áreas com especificidades intrínsecas muito marcadas como o teatro, a dança, a performance ou a instalação. De facto, em rigor, há diferenças mais ou menos assinaláveis, do ponto de vista quer da performance artística quer da fruição pública quer da dimensão contextual associada, entre assistir a um concerto online ou, por exemplo, a uma peça de teatro ou a um espectáculo de dança — problemática que nos levaria longe.

Uma ressalva aqui para um aspecto importante relativo às práticas de streaming, até tendo em conta vários exemplos vindos a público recentemente: é fundamental que os conteúdos (espectáculos) disponibilizados na Internet, quer sejam em live stream ou provenham de arquivo, defendam e valorizem, pela sua qualidade de registo/captação, essas mesmas propostas artísticas, de modo a não terem um efeito contrário ao pretendido junto dos destinatários. Isso implica, da parte dos promotores de streaming, uma preocupação com factores como a definição de imagem, a qualidade do audio e o posicionamento das câmaras (recurso a sistema multicâmara em vez de captação numa perspectiva/ângulo fixo), sem esquecer a capacidade da banda de upload para a disponibilização online, ao vivo, do material a difundir.

Constatamos que vários teatros a nível nacional começaram já a transmitir espectáculos via online com acesso gratuito. Trata-se, em regra, de peças de teatro resultantes quer de produções próprias quer de co-produções que se estrearam nas suas salas nos últimos anos, as quais podem agora, pela primeira vez, ser fruídas a partir de casa como forma de manter a interacção social das instituições com os seus públicos. Vê-se também por aqui a importância de os equipamentos culturais preservarem em arquivo essa memória performativa. Que esta conjuntura contribua para uma maior atenção a esta questão do registo audiovisual dos espectáculos e da qualidade técnica da sua captação, no sentido de uma crescente sensibilização e capacitação das diversas entidades que apresentam propostas artísticas.

Na verdade, além de poderosa ferramenta de marketing, esta tendência de desmaterialização que o streaming representa constitui uma forma privilegiada de manter um canal directo, ainda que por via remota, com os públicos em tempo real, permitindo também a estes uma grande autonomia e comodidade em termos de escolhas.

É incontornável que o surto causado pelo coronavírus — mas pode(ria) bem ser outro o motivo de isolamento e quarentena — veio reforçar ainda mais o papel do streaming on-demand e são já vários os países onde se observam novas estratégias adoptadas pelos principais grupos dos sectores das artes do espectáculo e do audiovisual. Veremos como esta tendência evoluirá em Portugal, sendo que tem sido igualmente interessante constatar, ainda no que toca à dimensão digital, os argumentos pró e contra que têm vindo a público sobre a significativa disponibilização de conteúdos ao vivo gratuitos (sublinho esta ideia) na Internet, a qual se tem vindo a registar nos últimos tempos nomeadamente na área musical. Mais uma vez, questiona-se nalguns meios até que ponto a gratuitidade do acesso a conteúdos artísticos online pode ou não contribuir para uma maior difusão e valorização públicas ou, ao invés, para uma preocupante banalização de cariz massificante dos mesmos. Outra questão a aprofundar.

Mais um aspecto que considero relevante: auscultar como esta conjuntura vai afectar a futura circulação internacional de projectos no domínio das artes performativas, tendo em conta algumas restrições e condicionalismos que, por razões preventivas, possam eventualmente manter-se ou adoptar-se no que concerne à livre circulação de pessoas, neste caso ligadas ao sector artístico, à escala global. Como sabemos, e para além da grande importância da internacionalização das criações portuguesas em termos de apresentação pública, existem, paralelamente, redes de colaboração alargadas, projectos de criadores nacionais cuja concretização envolve parcerias estrangeiras, programas de residência artística no exterior, intercâmbios e trocas de experiências já muito aprofundados dentro das áreas cultural e artística não só no âmbito do espaço europeu como também na relação sobretudo de Portugal com o continente americano e ainda com África.

E os efeitos desta fase na própria criatividade artística e nos seus processos internos? É inegável que esta conjuntura de resistência pode constituir um poderoso desafio, um estímulo para a reinvenção, uma inspiração para a inquietante máquina da imaginação artística. Temas como o isolamento e a clausura, os limites do contacto afectivo e social, a imunidade (real e simbólica), a religação primordial com o eu e a natureza, as consequências de um medo generalizado perante algo invisível e imprevisto, a relação do humano com o tempo e o silêncio, os efeitos plurais da circulação global de pessoas, o limiar da subsistência e da dignidade, a própria temática meta-artística da ausência física de público, entre outros, podem decerto, enquanto leitmotive, alimentar velhos e novos caminhos de inventividade e questionamento artísticos.

Last but not least, destacar uma questão absolutamente central, que já o era anteriormente, há muito, e que agora se reveste de uma acuidade e actualidade que esta conjuntura veio acentuar tremendamente, sendo este — volto aqui a um ponto já abordado neste texto — um tempo de clara oportunidade para o Governo poder encará-la com frontalidade e assertividade depois de demasiados anos de adiamento: a definição de um estatuto socioprofissional para os profissionais das artes do espectáculo e audiovisual.

Enquadrando: sabemos que a Cultura é uma das áreas em que o trabalho descontínuo e incerto é mais frequente devido a factores como as especificidades de algumas profissões artísticas e a sazonalidade da oferta. Portugal é um dos países europeus, a par da França, Eslovénia e Espanha, que mais trabalhadores temporários empregava no sector cultural já em 2006: 29%. Verifica-se ainda que o emprego cultural no sector público e no sector terciário (prestação de serviços) manifesta uma forte dependência da evolução dos orçamentos públicos e das políticas elaboradas pela tutela da Cultura, em articulação ou não com outros ministérios, designadamente os ligados à Educação e ao Trabalho.

Sabemos também que a partir dos anos 90 do século passado registou-se um notório incremento das políticas culturais locais com repercussões óbvias na empregabilidade do sector da Cultura. No que toca à administração local, o sector público detém, de facto, um maior protagonismo enquanto empregador. Nesta realidade, contudo, há dois aspectos claramente incontornáveis que têm de ser relevados: no caso dos equipamentos integrados em redes, como as bibliotecas e museus (e também os arquivos), foram definidos, desde o início, critérios rigorosos quanto aos recursos humanos e perfis profissionais a requisitar, ao passo que, no concernente aos cine-teatros/auditórios, houve uma absoluta ausência de especificações por parte da tutela; soma-se a isto o facto de muitos dos cine-teatros serem geridos pelas autarquias, o que tem suscitado problemas ao nível da contratação de perfis adequados por essas carreiras não estarem previstas na estrutura da administração pública. Isto acaba por gerar, em última análise (e entre outras consequências), uma menor valorização e dignificação pragmáticas, funcionais e simbólicas destes profissionais quer junto do poder decisório, quer no seio das instituições onde trabalham, quer junto do tecido social externo e do próprio meio artístico.

Como já diversos estudos emanados de organismos do próprio Estado e muitas associações profissionais têm apontado há mais de 15 anos, existem claras dificuldades de enquadramento, no sector público, de profissões emergentes, como sejam, entre outras, técnicos de serviços educativos, directores artísticos, programadores, curadores ou gestores culturais. Dentro das categorias-funções artística, técnico-artística e mediadora, há, pelo menos, num primeiro olhar, no universo profissional das artes do espectáculo e do audiovisual perto de 50 profissões a ter em conta. Isto mostra um claro paradoxo, como certeiramente já apontava em 2009 a obra Trabalho e Qualificação nas Actividades Culturais, de Rui Gomes e Teresa Martinho, editada pelo Observatório das Actividades Culturais (OAC): “se, por um lado, crescem e se diversificam, no domínio da Cultura, as responsabilidades e incumbências das instituições públicas, sobretudo das autarquias, mantém-se, por outro lado, o problema da rigidez que caracteriza quadros e regulamentos de pessoal na administração pública e que representa um obstáculo à integração de novas funções, ao assumir das referidas competências”.

Para resolver esta questão que considero prioritária — e as inevitáveis consequências do seu adiamento sistemático, ainda mais evidentes e prejudiciais em períodos críticos como o que agora atravessamos —, o Ministério da Cultura tem, de facto, uma intervenção limitada, somando-se a isso o já tradicional pouco peso político-simbólico e menor capacidade de influência do mesmo junto da cúpula governamental.

Como tal, é imperioso que a tutela da Cultura possa alavancar e desenvolver uma actuação integrada com outros ministérios, em bloco concertado, e que essa rede colaborativa seja legitimada pelos responsáveis máximos do Governo, de modo a que a legislação produzida sobre trabalho de criadores e outros profissionais da Cultura não fique, em geral, como até hoje, muito aquém das intenções explicitadas pelos próprios programas dos executivos. Isso deve-se, em grande medida, à complexidade desta matéria, na medida em que a sua resolução pressupõe a adopção de estratégias de intervenção integrada de diferentes áreas ministeriais (Cultura, Trabalho, Segurança Social, Educação). Por outro lado, é deveras importante que o próprio universo cultural e artístico, tantas vezes disperso, tenha a vontade e a capacidade de se mobilizar enquanto colectivo e enquanto massa crítica para pressionar e reivindicar, de forma fervorosa mas também consistente e responsável, estas legítimas aspirações junto do Governo.

De alguma forma, continuamos a assistir, em maior ou menor grau e ao sabor das conjunturas, a sucessivos elencos governativos que afirmam apaixonadamente nos seus discursos que a Cultura é um pilar essencial da sociedade e do desenvolvimento harmonioso das comunidades e dos seus territórios, mas que depois, em termos práticos (e simbólicos), não assumem uma valorização efectiva desse universo, a qual não passa unicamente — sublinho mais uma vez esta ideia— pela atribuição de apoios financeiros pelo Estado, mas tem de ter, sim, um alcance efectivamente estrutural.

Nesta linha, a Arte deve ser considerada como um trabalho e uma profissão, devendo os seus trabalhadores beneficiar, à imagem dos demais sectores de actividade, de um estatuto legal, sendo igualmente necessário facilitar o acesso dos artistas à informação sobre as suas condições de trabalho, mobilidade, desemprego, saúde e aposentação. Já em 2007 o relatório sobre o estatuto social dos artistas elaborado no âmbito da Comissão de Cultura e Educação do Parlamento Europeu propunha aos vários países membros a implementação de enquadramentos regulamentares e outras medidas em seis dimensões: a situação contratual; a protecção do artista; a política de vistos; a formação ao longo da vida e reconversão; a reestruturação das práticas amadoras; e a garantia de formação artística e cultural desde a infância.

Voltando ao mote inicial deste texto, como não relembrar que o filósofo e matemático francês Blaise Pascal defendia, já no século XVII, que todos os problemas da humanidade decorriam da incapacidade de o homem ficar tranquilamente sozinho sentado no seu quarto? Curiosamente ou não, no século XX a história da performance e da instalação está repleta de exemplos de abordagens em que artistas se isolaram/confinaram/enclausuraram para transmitir a sua mensagem, para explorar os limites do corpo e da resistência física e mental, para veicular politicamente um statement, para ousar o desconhecido, para se sentarem à beira do mundo (do já aludido Beuys a Abraham Poincheval, de Tilda Swinton a Alberto Pimenta ou a Marina Abramovic, entre tantos outros).

A Arte tem esse condão de criar momentos de verdade, de ambiguidade, de força — de liberdade na maior das precariedades, como advogava o cubano Carlos Celdran. A partir desta aparente quietude, daquele silêncio que grita baixinho, o meio criativo e artístico não pode deixar de continuar a construir a maior das viagens: a aceleração da densidade do mundo, a busca da transparência do encontro irrepetível com o outro.

Que este solitário e mais humilde olhar para dentro e que esta paciente escuta do “ser” — que nos colocam a todos no mesmo patamar — (re)acendam aquela pequenina luz bruxuleante que, mesmo na noite mais escura, transforma o real, reinventa esperançosamente a vida e faz da Arte-Cultura um farol carregado de futuro.

O autor não segue o novo acordo ortográfico

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