Escravatura, rebeldes de Lisboa e xenófobos franceses: a comédia de Fary é uma prenda na Netflix

Hexagone é o espectáculo mais recente, parte um disponível desde dia 12, e a part deux chega dia 16 de Abril à Netflix.

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Fary Homayoun/Netflix

Um dos escaparates que mais facilita o consumo de espectáculos de comédia stand-up de todo o mundo, a Netflix tem uma pérola chamada Fary para descobrir. Comédia stand-up em francês, tão dialogante quanto bem vestida, e tão interventiva quanto bem-vinda. Hexagone é o espectáculo mais recente, parte um disponível desde dia 12, e a part deux chega dia 16 de Abril à Netflix. A operação está rodeada de qualidades várias, a começar pela direcção artística a cabo de Ladj Ly, o elogiado realizador de Miseráveis (2019).

Fary é um (jovem) fenómeno da comédia francesa e, começando pelo menos importante, a certa altura de Hexagone (uma referência directa ao formato geográfico de França e ao tema do seu feito) o sátiro fala de Lisboa. Primeiro de alguém nefasto com quem se cruzou num voo (coisa mais corriqueira) vindo da capital portuguesa, depois do hábito libertário e suicida dos portugueses de atravessar a estrada sem olhar propriamente às regras das passadeiras e dos semáforos.

Por mais que Lisboa seja cosmopolita, cidade na moda que agora se vê esvaziada de lisboetas e do maná dos turistas, o conhecimento antropológico do peão rebelde pode muito bem ter outra explicação — Fary é Fary Lopes de seu nome, e não sendo português tem o apelido associado à Cabo Verde dos seus pais, uma educadora de infância e um operário que emigraram para um subúrbio parisiense e ali o criaram.

Sendo a referência a Portugal o menos importante, é talvez o prisma mais relevante de Fary — ele é um emigrante; ele é francês. Tanto fala de como uma opinion maker foi à televisão dizer que o objectivo da escravatura era “manter os escravos saudáveis” quanto de ter sido posto no seu lugar quando, numa estadia no Senegal, jogava com a sua identidade enquanto africano. A realização de Ladj Ly dá-lhe uma imagética subtil, com ele colorido e o teatro e o público que o rodeiam a preto e branco. Como, em tantos momentos, é o mundo. (E o cabelo de Fary, inspirado na Rogue dos X-Men.)

Pele, hábitos, cultura, colonialismo, xenofobia e o racismo da sociedade francesa são apenas alguns ingredientes da comédia de observação de Fary, cuja intervenção na rede humorística francesa tem toques de requinte: abriu um clube de comédia, o Madame Sarfati, de entrada livre em parte da semana, decorado pelo artista JR; é o primeiro comediante da sua geração a chegar a tais píncaros Netflix e fá-lo num formato inovador, em duas partes, como uma minissérie.

Até chegar a part deux, se se apreciar a sua comédia, é ir espreitar Fary is The New Black (2016), um espectáculo anterior do mesmo comediante de 28 anos disponível na mesma plataforma de streaming.

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