O vírus que desafia a unidade e o futuro

A Europa também é cooperação e interdependência e sem isso faz pouco sentido falar em identidade europeia, povo europeu ou mesmo comunidade.

Afinal, a grande prova de vida para a qual a União Europeia estava guardada não era a crise de 2008 nem o Brexit. Ao pé do surto de covid-19, e do que daí pode advir, esses dois exemplos foram uma espécie de meteoros que passaram ao largo sem chocar. O que realmente está a deixar às claras as fragilidades do projecto europeu é este vírus que não respeita fronteiras, nem pontos cardeais, nem condições sociais, relevo ou meteorologia. É (também e sobretudo) num momento como o que se vive agora no mundo que a Europa unida faz sentido. Bem sei que na base da sua fundação estiveram sempre objectivos económicos (não é por acaso que se chamou Comunidade Económica Europeia), mas o sucesso da economia e das finanças e o exemplo que a Europa pode dar ao mundo assenta também noutros pilares. Um deles é a solidariedade.

Pensei em dar um título a este texto inspirado numa música de José Cid. Em vez de “Adios, adieu, auf wiedersehen, goodbye”, seria qualquer coisa como “Solidaridad, solidarité, solidarität, solidarity”. Desisti por achar que seria repetitivo, apesar de não ser de mais insistir, perante as declarações recentes do ministro das Finanças holandês, que a Europa também é cooperação e interdependência e sem isso faz pouco sentido falar em identidade europeia, povo europeu ou mesmo comunidade.

Sim, refiro-me a Wopke Hoekstra que esta semana seguiu os passos do seu antecessor (Jeroen Dijsselbloem) e sugeriu que a Comissão Europeia devia dedicar-se a investigar por que razão certos países — e exemplificou com Espanha — não conseguiram acumular nos anos recentes uma almofada financeira suficiente para enfrentar confortavelmente a crise provocada pelo novo coronavírus. Como se este fosse o momento certo para ajustar contas e para perder tempo com investigações insidiosas. Como se a prioridade da Europa devesse ser olhar para trás e não preparar-se para o combate da sua vida que tem duas fases: a actual, em que há uma pressão brutal sobre os sistemas nacionais de saúde cada vez mais fragilizados; e a consequente, quando for preciso combater os efeitos da dormência da economia. Isso, sim, devia preocupar os ministros das Finanças e os chefes de Governo. Era nisso que os dirigentes europeus deviam estar a gastar as suas energias em vez de o fazerem com quezílias inoportunas.

Cada vez que a coisa se complica no espaço europeu não pode vir alguém lembrar que uns vivem à sombra da bananeira, outros acima das suas possibilidades e muitos à custa do sacrifício de outros. Na verdade, poder, pode, porque a Europa também é liberdade de expressão. Mas não deve. E esta guerra — como lhe têm chamado vários responsáveis políticos — é um desafio à unidade, mas não é como as outras. O vírus não fica mais forte perante a alegada irresponsabilidade dos países do Sul, nem abranda perante a riqueza dos supostos países ricos do Norte. 

Não há culpas a exorcizar. O inimigo não é exclusivo de uns ou de outros. É comum, chama-se SARS-cov-2 e está a matar pessoas, a fazer definhar negócios, a quebrar tradições e a enfraquecer a democracia, a educação e a cultura. Só daqui a muito mais tempo do que gostaríamos, quando a vacina estiver generalizada, é que conseguiremos perceber os efeitos deste vírus nas nossas vidas, nas nossas terras, nas nossas crianças, no nosso futuro. Para já, virou tudo do avesso. 

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