Informação versus Propaganda

Enquanto cidadã, gostaria muito, mas mesmo muito, que os governantes, das mais variadas patentes da hierarquia governativa, que nos enchem os ecrãs, falassem um pouco menos e que a informação fosse, exclusivamente, acerca daquilo que realmente importa, perante uma emergência sanitária.

Tenho sido uma cidadã absolutamente cumpridora das prescrições de confinamento domiciliário: não saio de casa; trabalho à distância; telefono aos meus pais e sogros para saber como estão e, sobretudo, para que eles não se sintam tão sós; envio mensagens aos meus amigos; leio muito; escrevo; vejo temporadas completas de séries; leio jornais online e, naturalmente, vejo noticiários televisivos.

E nestes noticiários televisivos o que me assalta são desfiles verdadeiramente pantagruélicos de governantes vários, das mais variadas patentes da hierarquia governativa, multiplicando-se em declarações e conferências de imprensa, que têm duas curiosas particularidades: a primeira, que é a de serem compostas por frases predominantemente conjugadas no futuro: “faremos”, “será lançada”, “estamos a preparar”, “implementar-se-á”.

A segunda, que é a de asseverarem, constantemente, a sua veracidade e a sua transparência no processo, algo que evoca em mim os discursos habituais naqueles momentos em que a fidelidade conjugal é posta em causa: “dizemos sempre a verdade!”; “não ocultamos nenhum facto!”; “se os senhores jornalistas têm outras informações é porque não chegaram a nós (autoridades) a tempo!”. Afinal, entre isto e o tradicional “mas, querida, eu era lá capaz de te enganar!” e o “se te disseram que eu estava no hotel com fulana, foi certamente porque me confundiram com outro qualquer!”, convenhamos que as semelhanças são grandes.

Para além destas duas particularidades da propaganda política, que está a ser feita em torno desta situação trágica que é, antes de mais, e não negligenciando toda a dimensão dos seus impactos económicos e sociais, presentes e futuros, mas que é, repito, antes de mais, uma situação de emergência sanitária, causa-me uma enorme estranheza o total desfasamento entre a retórica governativa e a realidade do país.

Assim, e só a título de exemplo:

1. O apoio à tesouraria das empresas: reconhecendo o meu total desconhecimento em matéria de economia e finanças, sei, no entanto, que o tecido empresarial português é dominado pelas micro, pequenas e médias empresas e que estas serão (já estão a sê-lo), naturalmente, as grandes afectadas por esta tragédia.

Ora, tendo um familiar próximo que é responsável por uma dessas pequenas empresas, tive ocasião de ler uma generosa missiva que lhe foi enviada por uma instituição bancária, com quem trabalha, informando-o de que tem disponível, para apoio nesta fase, uma verba significativa, que poderá ser transferida de imediato. A esta benemerente informação segue-se, em letras bem mais pequenas, uma outra: os juros serão a combinar…. Parece-me que isto já diz muito sobre o propalado apoio da banca.

2. A questão dos lares, dos centros de dia e das unidades de cuidado, e da necessidade de nos seus “planos de contingência” contemplarem a disponibilidade de pessoal suficiente para terem equipas a funcionar “em espelho”. E é indiscutível que isso seria o adequado e o desejável, mas, com honestidade, quantas destas instituições sociais têm condições para o fazer?

Num país em que a taxa de cobertura de estruturas públicas, ou semi-públicas, deste tipo é gritantemente escassa, e em que até os lares privados mais baratos praticam preços que estão muito acima das capacidades de rendimento das famílias portuguesas, como se garantiria essa disponibilidade de recursos humanos, sem que isso significasse um aumento enorme das mensalidades ou, em alternativa, a falência dos equipamentos?

Acresce que compõem boa parte dos recursos humanos destas infraestruturas, nomeadamente, no que respeita às auxiliares de acção directa, pessoas com poucos recursos económicos e habitacionais, factor que pode resultar num maior risco de contaminação.

3. O não-pagamento do tempo de acompanhamento aos filhos coincidente com o período de férias da Páscoa: na maior parte das famílias portuguesas, durante as férias, as crianças permanecem nos infantários, nos ATL ou, em alternativa, em casa dos avós.

No momento actual, os infantários e ATL estão encerrados e aos avós está prescrito, para sua própria protecção, o isolamento social e, consequentemente, a ausência de contacto com os netos.

Sendo assim, em que difere o período das férias da Páscoa desta fase que vivemos, desde o fecho das escolas? E se em nada difere, por que razão não deve ser pago?

4. A afirmação da importância de as pessoas não adoecerem “todas ao mesmo tempo”… talvez ainda vá ser elaborado um decreto para que nos organizemos para adoecer “em espelho”.

Quando se começou a falar do perigo da covid-19 e o país aguardava, expectante, que algum dos testados acusasse positivo, veio-me à memória a tragédia dos incêndios e o modo como, nela, ficou patente a inoperância nacional. A proliferação dos discursos políticos em torno da situação actual só serve para reforçar a minha desconfiança, face à possibilidade de ocorrência de algo semelhante.

Por isso, enquanto cidadã, gostaria muito, mas mesmo muito, que os governantes, das mais variadas patentes da hierarquia governativa, que nos enchem os ecrãs, falassem um pouco menos e que a informação fosse, exclusivamente, acerca daquilo que realmente importa, perante uma emergência sanitária: quantos testes temos disponíveis (e a quem são realizados), qual a real evolução da contaminação, quais os recursos humanos e materiais de que o país dispõe e, finalmente, que insistissem na importância da obediência às prescrições de cuidado e isolamento. Como tudo isto são matérias de natureza técnica, talvez o melhor fosse que os políticos concedessem, a si próprios, um tempo de folga (e de resguardo) e deixassem falar os especialistas.

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