Viver o coronavírus dentro dos hospitais: “É como estar na praia à espera de um tsunami”

Os hospitais reorganizam-se para responder à fase de mitigação. “O mais difícil tem sido a carga emocional”, desabafa um dos médicos do Hospital de S. José.

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Lisboa

Hospital de São José: a tranquilidade “assustadora”

Do lado de lá do telefone, sente-se a hesitação. “Como me sinto? Com uma tranquilidade assustadora. É como estar na praia à espera de um tsunami.” Lida há muito tempo com doentes críticos, com a morte, mas esta é uma doença nova, imprevisível. Aos 35 anos, José Paxiuta, especialista em cuidados intensivos na unidade de urgência médica do Hospital de São José, em Lisboa, socorre-se da experiência acumulada, da formação e do treino para enfrentar catástrofes para se preparar com calma, a calma possível, para os dias que se avizinham.

“Vamos ter muito tempo para ficar stressados. É como quando nos preparamos para um exame. Antes, estamos muito nervosos. Mas quando o exame começa não temos tempo para pensar muito nisso.” O intensivista italiano Paolo Pelosi deu um conselho aos colegas portugueses. Disse-lhes que, para serem eficazes nos cuidados aos doentes com covid-19, têm que ser tough guys (tipos duros). Concorda? “Sim. Mas o mais difícil, para já, tem sido a carga emocional. Estes doentes não podem ter visitas, e todos dos dias os familiares nos choram ao telefone.”

Na unidade de urgência médica do S. José (que pertence ao Centro Hospitalar de Lisboa Central), a azáfama ainda é sustentável. “A situação está gerível. Temos material de protecção, não nos falta nada. Ainda não estamos naquela fase do ‘ai Jesus’.” José Paxiuta não consegue prever se e quando essa fase vai chegar. Para já, as camas estão a ser abertas à medida que os doentes chegam e eles ficam mais tempo do que é habitual nos ventiladores. Alguns não resistem, outros salvam-se. É uma doença completamente nova, é arriscado fazer prognósticos.

“Estamos bem, mas se houver um número tão elevado de casos críticos como aconteceu em Itália e em Espanha, se entramos em ruptura, em colapso, não há muito a fazer. Estamos a preparar-nos, mas não há país no mundo que consiga enfrentar um boom desta dimensão”. Como enfrentar o tal tsunami que todos temem? Os especialistas em medicina intensiva não chegarão, mas vão contar com o apoio dos anestesistas que habitualmente trabalham nos blocos cirúrgicos, agora quase parados, e de outros com alguma formação em cuidados intensivos. “Não precisam de estar todos com a mão nos ventiladores”, diz. Na unidade estão todos já fazer mais horas do que o habitual. “Voluntariamente, para evitar que os os outros fiquem estourados.”

No mesmo hospital, há duas semanas a preparar-se para um  eventual cenário de calamidade e de ser chamado também para a linha da frente, os cuidados intensivos, o neurologista Bruno Maia, 37 anos, corrobora: “A situação está tranquila.” Com as urgências bem mais vazias e grande parte das consultas e cirurgias adiadas, “sobra tempo e espaço” para ver os doentes com calma.

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“É obvio que estamos e ansiosos por antecipação. Mas temos os planos de contingência. Estamos a preparar-nos. E fazer planos tem-me ajudado a lidar com esta situação.” Ainda é cedo para perceber o que vai acontecer e Bruno Maia está igualmente consciente de que, se Portugal seguir o exemplo de Itália e de Espanha, será “uma catástrofe”. “A situação pode descontrolar-se. Vai haver casos de burnout porque muitas pessoas vão morrer”, antecipa. Os profissionais de saúde têm mais do que nunca que cuidar-se: “Não podemos dar-nos ao luxo de ficar doentes.”

Porto

Hospital Universitário de Santo António: quarentena mas só no fim do turno

No dia 19 de Março foi internado no Hospital de Santo António, no Porto, um doente com sintomas respiratórios. O teste ao covid-19 revelou-se positiva e a 24 de Março este doente teve de ser transferido de serviço. O problema é que, até lá, conta ao PÚBLICO uma enfermeira de um dos maiores hospitais do Porto, cerca de 40 profissionais de saúde prestaram-lhe cuidados sem o equipamento de protecção adequado. 

Alguns, reitera, continuam a trabalhar. “Os que estão no grupo de contacto de alto risco são contactados pelo serviço de saúde ocupacional e a indicação é para isolamento total da família, mas para continuar a trabalhar até surgirem sintomas.” Por causa disto, conta a enfermeira que não quer ser identificada, houve colegas que “mandaram as mulheres e filhos para casa dos pais” por não terem a segurança garantida. “No meu serviço, que tem sete enfermeiros de quarentena, ainda não faltam [profissionais de saúde]. Mas alguns colegas tiveram de pressionar o médico da saúde ocupacional para ficarem de quarentena.”

Só que por vezes até a quarentena tem de esperar um pouco mais. “Uma auxiliar foi contactada hoje [quinta-feira] e deram indicações para ficar em quarentena mas vai fazer o turno dela até às 20h00.”

Por isso, conclui: “Até surgirem sintomas vamos contaminando doentes e colegas porque usamos espaços comuns e porque o equipamento de protecção não é o adequado. Não temos óculos de protecção. Não temos protecções para as pernas. Se nos encostarmos ao doente ou à cama a farda exposta fica contaminada.” Apesar de tudo, já houve mais falta de material. “Já nos faltou desinfectante, mas agora temos. Está a ser racionado, mas tem chegado mais. Colocamos a máscara P2 e uma máscara com viseira por cima.”

Neste hospital existe também uma unidade de cuidados intensivos onde estavam internadas até ontem oito pessoas, sem necessidade de ventilação. “Nesta fase ainda está tudo tranquilo. Mas os médicos têm consciência que a situação vai evoluir”, conta ao PÚBLICO um anestesista que também não quis identificar-se.

Os anestesistas, que estão na linha da frente dos cuidados aos doentes críticos, estão a preparar-se para o que aí vem. Têm recolhido muitas informações sobre a covid-19 e estão em contacto com colegas estrangeiros, nomeadamente italianos, para aprenderem com a experiência de Itália.

Quanto aos materiais de protecção, o discurso é semelhante. Existem, mas não em grande número. O foco é a preparação máxima para o pico que todos sabem que irá chegar. Para tal o hospital tem vindo a tomar várias medidas de reorganização de cuidados para aumentar número de camas dos cuidados intensivos. O que, admite, nem sempre é fácil já que como estes cuidados são muito caros e altamente diferenciados às vezes os Governos têm a tentação de fechar camas e não abri-las.

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Porto

Hospital de São João: “Usei uma máscara o dia todo e fiquei com a cara desfeita”

No Hospital de S. João, no Porto, para onde estão a ser encaminhados muitos dos doentes com covid-19, os profissionais tentam gerir o caos e a falta de recursos humanos, enquanto atendem todos os utentes. “Não estávamos preparados para isto, nem o país nem o hospital”, declarou ao PÚBLICO uma enfermeira, dando conta do esforço acrescido que implica a necessidade de racionamento das máscaras. “Ontem usei uma máscara bico de pato o dia todo e fiquei com a cara desfeita, estou com o nariz em ferida”, relatou, preferindo não ser identificada. No início de um dia de trabalho, esta enfermeira diz sentir-se como fosse para um cenário de guerra”. “Entro no carro, vejo pessoas na rua e só me apetece dizer para irem para casa”, relata. Quando, no fim de um dia a lutar contra “um vírus que não se vê, o que também causa ansiedade”, regressa a casa vê “cada vez mais gente na fila à espera para ser testada.

Ao desgaste profissional, soma-se a privação da presença dos familiares. “Não estar com a família e os amigos custa-me muito, porque eu sou feita de pessoas”, diz, sublinhando, em contrapartida, a solidariedade que se instalou entre os profissionais do hospital.

Entre os anestesistas da mesma instituição, que, tendo visto suspensa muita da actividade cirúrgica estão a ser divididos por outros serviços, a gestão faz-se dia-a-dia porque “todos os dias há pessoas que ficam de quarentena ou doentes e outras que regressam”, como descreve uma anestesista, confirmando a escassez de material de protecção, que tem mesmo levado alguns dos profissionais recusarem determinadas tarefas enquanto o material não chega. “Os anestesistas fazem procedimentos muito invasivos, as pessoas tossem, espirram para cima de nós. Tudo isto gera algum descontentamento e irritabilidade no trabalho”, lamenta, lamentando que tenham de “andar a pedinchar”, o que cria “um bocadinho de instabilidade emocional”, sobretudo porque já houve colegas infectados por causa de doentes internados que não se julgava que estavam infectados. “Nos últimos dias julgo que isso já não tem acontecido”, ressalva a anestesista, para acrescentar que, quando chega a casa, faz “um circuito quase independente” antes de tomar banho e só depois contacta com a família. “O meu marido também continua a trabalhar e tenho recorrido aos avós para ajudar com as crianças, não tenho outra opção”, lamenta.

Já nas urgências pediátricas metropolitanas do hospital de S. João, o movimento “tem diminuído”, segundo uma pediatra, “mas os casos que aparecem são genericamente graves”, ainda que relacionados com outras doenças. A regra tem sido fazer o teste laboratorial de despiste da covid-19 aos menores, “mesmo quando estão lá por outros motivos”, sendo que “há crianças positivas mas sem sintomatologia grave”. O maior desafio, segundo a pediatra, tem sido conseguir “levantar a moral” dos profissionais exaustos.

Bragança

“Já aceitamos que vamos todos adoecer inevitavelmente”

“Desorganização” é a palavra mais vezes repetida pelos profissionais de saúde do hospital distrital de Bragança para descrever a forma como estão a lidar com a pandemia de covid-19. Até meio desta semana, não havia sequer um horário de trabalho validado pela direcção clínica. Foram os profissionais que se auto-regularam, definindo o seu próprio horário.

“O que sentimos é que não havia plano nenhum”, explica um médico daquela unidade de saúde, que pediu para não ser identificado. Médicos e enfermeiros contam estar já “a viver na pele” os problemas causados pela falta de organização da unidade de saúde e assumem que serão eles próprios afectados: “Nós já aceitamos que vamos todos adoecer, inevitavelmente”.

Um médico e dois enfermeiros estão em casa, em isolamento, enquanto esperam os resultados do teste, suspeitos de serem portadores do vírus. A restante equipa também foi testada e aguarda resultados, mas continuou a trabalhar.

“É uma luta, todos os dias”, garantir que existem materiais de protecção individual dos profissionais de saúde, diz o mesmo profissional. Na semana passada, quando começaram a ser tratados pacientes com o novo coronavírus, não existia sequer o equipamento adequado.

Hoje, ainda é preciso usar os meios “com muito parcimónia”, até porque há dias em que estes continuam a faltar. Na quarta-feira, por exemplo, as batas disponibilizadas aos profissionais de saúde não eram impermeáveis, o que os impediu de fazer o trabalho habitual. Durante todo o dia, os médicos não puderam ver os pacientes.

A equipa dedicada para tratar dos pacientes com diagnóstico confirmado ou suspeitas de ter a doença está “desfalcada”. Inclui apenas um especialista e dois médicos internos, a que acabariam por se juntar, de forma voluntária, dois outros clínicos, no início desta semana.

Algarve

Urgências na pediatria do Hospital de Faro caem a pique

À medida que o Coronavirus se alastra, todas as outras doenças que faziam correr os doentes para as urgências hospitalares foram minimizadas ou, temporariamente, esquecidas. O Serviço de Pediatria do Hospital de Faro é um dos casos mais significativos da mudança de atitudes dos utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS). No ano passado a média dos pedidos de assistência foi de 132 crianças por dia. Nos últimos dias, a afluência caiu para as duas dezenas. A região algarvia, por enquanto, é uma das menos atingidas pela doença. Dos 89 doentes infectados, seis estão ligados aos ventiladores, no hospital de Faro – entre os quais, um padre de 32 anos.

A barreira natural do Alentejo e Serra do Caldeirão - com baixos índices populacionais - , de algum modo, tem evitado a disseminação da doença. Porém, os cenários apontam para um aumento dos casos nos próximos tempos, continuando  a escassear material básico. Ontem, no Hospital de Portimão, por exemplo, o stock de zaragatoas para fazer os testes ficou reduzido a sete ou oito exemplares. Mas, por outro lado, as habituais denúncias dos crónicos problemas relacionados com a falta de meios - especialmente, no hospital de Faro – calaram-se, ou, por momentos, ficaram entre parêntesis. “Nestas alturas, como habitualmente, vestimos a camisola”, diz o representante distrital da Ordem dos Médicos, Ulisses Brito, destacando a mobilização geral da classe.

Uma das situações que está a gerar algum descontentamento, em Faro, prende-se com a manutenção da obrigação do registo biométrico de controlo de assiduidade e pontualidade ao serviço. Numa situação de emergência nacional, sublinha Ulisses Brito, essa exigência “não faz sentido, só contribui para o stress dos profissionais”. Até porque, acrescenta, nem sempre há condições para “picar o ponto” em segurança. A este propósito, destaca: a embalagem do desinfectante, afixada ao lado dos equipamentos, encontra-se à mão dos utentes. O álcool desaparece, e não raras vezes fica por repor.

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Ao final da tarde de ontem, o hospital de Portimão recebeu o primeiro doente grave, com necessidade de ventilação mecânica. Trata-se de um homem, de 66 anos, que veio de férias de França para Portugal há uma semana. Na altura, o teste deu positivo. A decisão médica foi de o mandar para casa, em isolamento domiciliário. A monitorização clínica passou a ser feita por contacto telefónico diário. Ontem, deu entrada nas Urgências, “e já vinha nas últimas”, disse ao PÚBLICO fonte hospitalar, acrescentando que a evolução foi galopante. Por coincidência, o Comando Distrital de Protecção Civil, na mesma altura, reunia com a administração do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA) para desenhar um plano de emergência, tendo em vista o previsível agravamento global da situação.

Beja

Hospital destina um piso para os doentes infectados

O distrito de Beja tinha, até às 24 horas de ontem, apenas três infectados por Covid-19, que se encontram retidos nas suas residências, mas nas próximas semanas “iremos ter mais” com a fase de mitigação que entrou em vigor, admitiu ao PÚBLICO, Pedro Vasconcelos, presidente do conselho sub-regional de Beja da Ordem dos Médicos (OM).

Para fazer ao eventual fluxo de infectados que pode ocorrer nas próximas semanas, Pedro Vasconcelos diz que apesar “não existir equipamento protector no número de que gostaríamos, é suficiente para garantir que as pessoas tenham o apoio médico adequado.” O representante da OM tem presente que a Covid-19 irá infectar mais pessoas, mas escusa-se a entrar em pormenores, alegando uma necessidade de contenção “precisamente pelo impacto provocado pelo carrossel de notícias e normas que não nos permitem garantir a exactidão das nossas afirmações”.

Antes da fase de mitigação, o resultado dos testes efectuados em Évora, “demoravam dias até que fosse conhecido” adiantou ao PÚBLICO um elemento dos serviços de saúde da região. Agora “estão garantidos ao fim de oito horas, mas continuarão a ser efectuados naquela cidade”, acrescenta a mesma fonte

O Hospital José Joaquim Fernandes de Beja já destinou um piso da unidade de saúde para os doentes infectados, onde são retidos os casos suspeitos até se saber o resultado do teste, que irá determinar se o doente fica internado ou vai para casa.

O PÚBLICO aguarda que a Administração Regional de Saúde do Alentejo forneça mais elementos sobre a logística que está montada nos serviços de saúde do Baixo Alentejo e as as medidas de contenção e de cobertura médica que estão previstas para as comunidades ciganas e imigrantes.

Viseu

Hospital de Dia da Ginecologia é agora área reservada à covid-19

O Centro Hospitalar Tondela Viseu (CHTV) ainda não chegou ao ponto de estar a usar todos os recursos humanos que foram estipulados para lidar com a covid-19, embora a afluência esteja a ter uma curva de crescimento com mais colheitas a serem realizadas e enviadas para o Hospital Sousa Martins, da Guarda. “Asseguramos que estamos a cumprir o Plano de Contingência com as medidas a serem ajustadas, de forma dinâmica e de acordo com a evolução da situação diária”, explicou, apenas, a administração.

A unidade de Viseu já está a receber casos suspeitos “alguns ficam internados, outros são enviados para casa para isolamento”. Perspectiva-se que os próximos dias vão ser “mais complicados”. Para evitar rupturas de material, o hospital lançou uma campanha, na qual apela à doação de máscaras cirúrgicas, batas impermeáveis, luvas, visores, óculos, monitores, ventiladores e câmaras expansoras.

São várias equipas de profissionais de saúde que estão destinadas, apenas, a lidar com a pandemia, embora a administração não tenha adiantado quantos. São eles que diariamente recebem os casos suspeitos na área destinada à Covid-19 e que ocupa actualmente a parte que antes era o Hospital de Dia de Ginecologia, junto à Urgência Geral.

Também há duas semanas que à porta do Serviço de Urgência está montado um Hospital de Campanha, uma área exterior de triagem pronta a ser accionada, caso o número de doentes aumente.

Desde que foi decretada epidemia e, depois, a pandemia provocada pelo novo coronavírus, a administração do CHTV anunciou medidas para manter longe do hospital possíveis contactos de contágio.

Onde antes era um rodopio de doentes e visitantes, hoje há um quase silêncio no átrio e outras áreas comuns. Refeitório e bares estão fechados. Nas enfermarias, apenas os doentes, médicos, enfermeiros e pessoal auxiliar. As visitas foram proibidas, excepto nos serviços de Pediatria, Neonatologia e Obstetrícia, mas com horários reduzidos. Para saber como estão os doentes internados, foram disponibilizados contactos telefónicos por enfermaria. As roupas ou medicamentos entregues pelos familiares, quando adequado, são deixados na recepção.

Na consulta externa, quase o mesmo cenário. Apenas estão presentes os doentes com exames ou consultas urgentes, como é o caso do Hospital de Dia Hemato-Oncológico que foi “desviado” para outro espaço. O objectivo foi o de criar um circuito restrito o mais possível para os doentes que já estão mais frágeis. “Continuamos a operar porque não podemos deixar os outros doentes sem resposta”, confirma fonte hospitalar. O restante serviço é assegurado telefonicamente. Na Urgência Geral, a afluência diminuiu.

 

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