Das artes à limpeza: dezenas de brasileiros em Portugal pedem resposta à crise de coronavírus

Imigrantes que ainda não estão regularizados no centro de preocupações de carta enviada a embaixada da maior comunidade estrangeira em Portugal. Governo ainda sem resposta. Há quem tenha sido forçado a ir de quarentena sem saber se irá receber ou quem escolha que contas não irá pagar. Se o Governo não pensar em todos, “rapidamente vai haver uma tragédia” teme um realizador.

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A grande afluência de brasileiros no consulado em Lisboa fazia com que as pessoas pernoitassem à porta Nuno Ferreira Monteiro

Beatriz trabalha na cafetaria de um hospital. Está em casa de quarentena obrigatória porque teve contacto com uma pessoa infectada por covid-19. Desconta para a Segurança Social há mais de dois anos, mas ainda não tem autorização de residência. Quem lhe vai pagar o ordenado e quando irá receber? Estas perguntas não lhe saem da cabeça por estes dias.

Laysla Pereira, 32 anos, chegou a Portugal há um mês e no dia em que ia começar a trabalhar num restaurante foi decretado o estado de emergência. Sem conseguir pagar a renda, sugeriu trocar o trabalho de limpeza num hostel onde estava alojada pela estadia — não sabe o que irá acontecer no futuro, o hostel fechou ao público e por agora a gerência deixou que algumas pessoas ficassem, mas desconhece até quando. Há lá gente de várias nacionalidades sem dinheiro para comer, conta.

Aos 34 anos, Francisco Pithon, realizador freelance que chegou há dez meses a Portugal, e desconta para a Segurança Social há sete, estava a fazer uma formação num canal de televisão para onde iria trabalhar quando foi apanhado de surpresa pela pandemia. Ainda não teve sequer resposta do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) sobre o seu pedido de autorização de residência, feito há seis meses, quando ainda trabalhava num restaurante.

“As pessoas trabalham, descontam, estão perdendo os seus empregos não sabem o que fazer”, afirma ao PÚBLICO por telefone. Há muita gente que ficou sem casa e sem local onde viver: “Vão ficar na rua e a transmitir o vírus?”, questiona. Com alguns biscates em carteira — “é a minha sorte” — diz que compreende a prioridade do Governo ser com os portugueses, mas afirma: “Se o Governo não pensar em todo o mundo, rapidamente vai haver uma tragédia, as pessoas vão ter que morar na rua.”

Este realizador é um dos subscritores de uma carta enviada ao embaixador do Brasil em Portugal, assinada por dezenas de pessoas e entidades, onde expõem a preocupação em relação aos brasileiros, como ele. Muitos têm contrato de trabalho, descontam para a Segurança Social mas por causa dos atrasos do SEF não estão regulares e estão impedidos de receber os apoios do Estado. 

Embaixada vai falar com Governo

Na lista há juristas, assistentes sociais, artistas, sommeliers, publicitários, realizadores, psicólogos, arqueólogos, professores, empregadas de limpeza, estudantes, escritores, ajudantes de cozinha: dezenas de assinaturas, e dezenas de profissões. Estão preocupados com o impacto da crise da covid-19 nesta comunidade imigrante, a maior no país. Segundo as contas do SEF há cerca de 151 mil brasileiros residentes, mas as contas de Carlos Vianna, membro do Conselho para as Migrações e vogal da Casa do Brasil, apontam para que cheguem aos 250 mil, entre os que estão por regularizar e os que já têm nacionalidade portuguesa.

Na carta, aqueles brasileiros pedem apoio à embaixada e colocam questões sobre outros casos: como ficarão os que, tendo autorização de residência há poucos meses, não contribuíram para a Segurança Social nos prazos mínimos; ou os que não conseguiram inscrever-se na Segurança Social, por atrasos nos serviços públicos ou por incumprimento do empregador; ou ainda os que não têm contrato de trabalho e estão na informalidade, situação que afecta muitos imigrantes em Portugal?

A embaixada diz que irá transmitir ao Governo as preocupações e discutir alternativas, afirmou ao PÚBLICO Luciano Andrade, ministro conselheiro da Embaixada do Brasil. “É uma preocupação grande da comunidade e estamos atentos a isso”, acrescentou.

Ao PÚBLICO, a Secretaria de Estado para a Integração e as Migrações disse que está a trabalhar com o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social para “encontrar soluções equilibradas e justas para garantir que os migrantes residentes em Portugal conseguirão ter a estabilidade, a segurança e os apoios sociais e laborais necessários para ultrapassar este momento difícil em condições de dignidade”. Lembrou ainda que os imigrantes em situação regular, “inscritos no sistema da segurança social, que estejam vinculados a empresas cuja remuneração tenha sido declarada à Segurança Social, são elegíveis para as medidas de protecção social”.

Carlos Vianna lembra que um número “muito grande de brasileiros” trabalha em comércio, restauração, hotelaria, serviços que agora fecharam. “Há muitas pessoas desesperadas”, sem poupanças sequer para regressar. “E há quem prefira ficar porque aqui há Estado Social, e com a postura do presidente [do Brasil] cuidar da saúde em Portugal é muitíssimo melhor do que no Brasil”, nota.

"A gente não tem onde se abrigar"

Ao telefone por Whatsapp porque a operadora já lhe cortou a sua conta, Francisco Pithon revela que a mulher, portuguesa, já pediu um empréstimo ao banco para os dois sobreviverem. “O meu lado financeiro fica quase a zero, ela está grávida ganha 65% do ordenado” como recepcionista num clube de ténis. “Até há 15 dias atrás a nossa vida não era assim”, desabafa. Neste momento escolheram pagar o arrendamento da casa, e estão a gerir as contas que escolheram pagar e as que irão deixar por liquidar. “E o mês que vem?”, questiona-se, angustiado.

Beatriz, nome fictício, vive há quatro anos em Portugal, e tem pago a Segurança Social; fez uma interrupção de cinco meses nos pagamentos e agora está à espera de marcação do SEF desde o segundo semestre de 2019. Conta que nem a contabilista da empresa sabe se ela terá direito a receber o ordenado — e de quarentena em casa obrigatória nem sequer pode procurar outro trabalho. “Para quem não tem uma base socio-económica fica ainda mais angustiante; a gente não tem onde se abrigar. As contas têm que ser pagas. Está todo o mundo numa situação caótica. Os portugueses vão passar por problemas, mas para os trabalhadores estrangeiros ainda se somam a outros problemas”, desabafa. 

Situação diversa mas igualmente sem resposta é de Gislaine Borges. Com três empregados a seu cargo num negócio que presta apoio domiciliário a idosos, Gislaine Borges foi dispensada do seu segundo trabalho numa empresa de alimentação. Na micro-empresa, “o volume de negócio é pequeno, acabo por trabalhar para outras empresas”, refere. Conseguiu que dois dos seus funcionários fossem para casa em isolamento, garantindo que os clientes continuem a pagar o ordenado; noutro caso acordou com uma funcionária ela ficar interna para “não andar de um lado para o outro” e aumentar o risco de contaminação ao idoso que assiste. Mas angustia-a pensar nos próximos meses, sobretudo relativamente à sua empresa e ao seu posto: “Com essa crise nem sei o que vem pela frente.” 

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