Doze lições do coronavírus e uma (possível) reestruturação das sociedades

Vivemos tempos de incredulidade e de incerteza e sentimo-nos, claramente, impotentes. Com horas mais dilatadas e um espaço de manobra mais restrito, talvez possamos questionar os resultados da arrogância, do cinismo e da ganância humana, para depois disto fazermos melhor.

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Reuters/STEFAN JEREMIAH

31 de Dezembro. Milhões de pessoas preparam rituais de passagem de ano. A China comunica à Organização Mundial de Saúde (OMS) a existência de um vírus desconhecido. Durante um tempo, mantemo-nos alheados. Até que nos bateu à porta. Guerras, crises humanitárias, tsunamis parecem reservados a determinados contextos. Hoje partilhamos uma mesma realidade, ainda que em ritmos e intensidades diferentes. Não há na memória dos vivos nada similar. Seria um desperdício não retirar as devidas aprendizagens.

1) A desigualdade mata. Apesar de estarmos todos e todas no “mesmo barco”, a verdade é que uns estão em isolamento em condomínios de luxo, outros apinham-se em apartamentos minúsculos, outros debaixo de pedaços de cartão. O impacto que uma doença destas terá em grupos sociais e territórios com menos recursos é evidente.

2) É fundamental assegurar direitos básicos: habitação, água potável, saneamento, etc. Espantoso que, depois de tantas calamidades, inúmeras estatísticas e um sem fim de decretos, ainda estejamos a discutir aspectos basilares. É no mínimo “amadorismo” para uma humanidade tão longa e tão civilizada.

3) Em países onde prevalece um ideal de sociedade baseado em valores individualistas, em que a saúde e a protecção da população se garante com seguros pessoais e serviços privados, a covid 19 tem reforçado a importância de um Estado Social robusto e abrangente.

4) No reverso da pobreza está a acumulação capitalista e o consumo desenfreado. Num período como este redefinimos prioridades. De repente, deixou de ser assim tão urgente comprar o último modelo do iPhone ou renovar o mobiliário da cozinha.

5) Também não podemos continuar nesta rotina frenética, 24/7, permanentemente ocupados. Encafuados/as nas nossas casas, sem a marcação rígida do relógio, percebemos que o ócio e a não-produtividade são também um direito.

6) Neste sentido, o tempo de escola e de trabalho poderia ser reduzido. Porque é que a velha ideia de trabalharmos menos horas e assim garantirmos emprego a toda a gente continua a causar tanta comichão e a soar irrealista ou utópica?

7) Por outro lado, esta crise tem evidenciado — e vai, infelizmente, evidenciar ainda mais — que a precariedade e exploração laboral são a norma e não a excepção; que a instabilidade, insegurança e flexibilidade no mundo do trabalho tem repercussões graves e perenes.

8) No âmago destes problemas está o eterno 1% vs 99%. Porém, a ameaça da morte toca a todos e a todas: ricos e pobres. No fim de contas, poder, dinheiro e prestígio contam muito pouco. Não deixa de ser irónico o impacto que o vírus teve nos cruzeiros ou que um dos nossos primeiros casos de óbito tenha sido o presidente de um dos maiores bancos do país.

9) Outra lição relevante — em Portugal e noutros países dependentes do sector turístico — é a insustentabilidade das viagens transnacionais. Basta observar a diminuição dos níveis de poluição atmosférica, a repentina limpeza dos canais de Veneza ou a recessão que se avizinha no mercado do turismo.

10) Numa altura em que nos debatíamos com a questão dos refugiados e com a intensificação da xenofobia, deparamo-nos com uma doença global e com a necessidade de fechar fronteiras. Mais uma ironia, nos territórios historicamente colonizados — Quénia, Gana ou México — ditam eles agora as suas regras, colocando barreiras aos países “desenvolvidos”. 

11) Nesta tensão entre local e global, temos vindo a perceber que a solidariedade não nasce por decreto ou de gestos filantrópicos. Por toda a parte, têm surgido grupos e movimentos espontâneos de vizinhança e proximidade que têm procurado responder àquilo que o Estado ou o mercado não pode ou não deve chegar.

12) Por fim, a uma escala mais íntima, este confinamento tem revelado como as relações superficiais e descartáveis — o “amor líquido” de Bauman — valem muito pouco e que, no fundo, todos/as precisamos de um lugar seguro e constante onde pousar. E que, por mais redes sociais que se inventem, necessitamos de afecto, toque e pessoas por perto.

Vivemos tempos de incredulidade e de incerteza e sentimo-nos, claramente, impotentes. Com horas mais dilatadas e um espaço de manobra mais restrito, talvez possamos questionar os resultados da arrogância, do cinismo e da ganância humana, para depois disto fazermos melhor. Se calhar temos a oportunidade de começar de novo, happy new year!

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