As nossas roupas contam a nossa história. O que acontece quando a narrativa é de pijama e sweat?

Os momentos de moda de cada um evaporaram-se no meio de ordens para trabalhar em casa, proibições de grandes convívios e outras precauções contra as incógnitas do coronavírus.

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Para qualquer pessoa que trabalhe fora de casa, vestir-se para o escritório é uma forma de contar a sua história The Washington Post

No escritório chamam-lhe “vestir com poder”, “business casual” e “vestir para o sucesso”. Os convites dizem-nos para nos aperaltarmos nas festas de cocktails ou para libertar a nossa imaginação com a gravata preta. Compramos algo novo, porque temos bilhetes para o teatro ou para um concerto. Ficamos em frente à televisão com um balde cheio de pipocas e tornamo-nos críticos enquanto assistimos a um desfile de celebridades – da moda ou não – na passadeira vermelha dos prémios de televisão, cinema ou música.

Estes são os nossos momentos de moda pessoais, reais e fingidos. Mas, por agora, desapareceram. Evaporaram-se no meio de ordens para trabalhar em casa, proibições de grandes convívios e outras precauções contra as incógnitas do coronavírus.

A praça pública fechou. Os trabalhadores foram expulsos dos seus locais de trabalho. As escolas estão fechadas. Os museus Smithsonian estão encerrados. Na Broadway as luzes apagaram-se. A Disneyland está fechada. E perdemos um pouco de nós. Uma parte essencial da nossa identidade está relacionada com forma como nos relacionamos com as pessoas à nossa volta, como nos situamos dentro da hierarquia social. Estamos definidos, em parte, pela nossa tribo. Vestimo-nos para contar a nossa história e, se não está lá ninguém para a ouvir, fomos postos em mute – tornámo-nos meros fantasmas de pijama.

Estamos habituados a transformarmo-nos numa pessoa pública. Quando isso já não faz parte da nossa rotina matinal, sem aquele momento de moda do quotidiano, podemos ficar descontraídos. As roupas de trabalho dominam a vida da maioria dos funcionários de colarinho branco, tanto que, se uma peça de roupa não pode ser usada no escritório, bem, ela não tem muito valor. Afinal, quem se preocupa em gastar dinheiro em roupas de lazer?

Colocamos o nosso kit profissional para atrair potenciais clientes, reflectir o teor das nossas indústrias ou impressionar um chefe. Vestimo-nos para mostrar as nossas competências — o fato de advogado, as riscas suaves dos banqueiros, o fato de treino com capuz de caxemira do técnico de tecnologia. Na raiz de todas essas escolhas está um apelo: “Veja o meu valor.” Junto com uma declaração clara: “Eu sou valioso.”

Para qualquer pessoa que trabalhe fora de casa, vestir-se para o escritório — seja esse escritório uma sala de aula, uma linha de montagem, ou um gabinete de executivo — significa entrar num conjunto que identifica o lugar de alguém na ordem social, que anuncia estarmos a participar no fluxo e refluxo de uma comunidade. A maioria das roupas de trabalho não enfatiza a individualidade. Pelo contrário, estas roupas lembram-nos que somos parte de algo. Aquele uniforme, aquela identificação pendurada num cordão, aquele alfinete do congresso: são todos lembretes de conectividade.

Trabalhar a partir de casa e nunca tirar o pijama pode, em primeiro lugar, parecer uma espécie de libertação — uma celebração do conforto e a censura às regras rígidas da empresa que exige collants e casacos o ano inteiro. Mas passar um dia inteiro em roupa de casa faz com que seja fácil perdermo-nos e perder o nosso foco e objectivo. As nossas roupas criam limites. Marcam o tempo. Pessoas que trabalham em casa regularmente falam da necessidade que têm em mudar do pijama para algo diferente para anunciarem que o dia começou. Para não se sentirem como uma preguiça. Para estarem preparados para enfrentar o mundo, porque sem o mundo quem somos nós?

Quando saímos para a rua, as nossas roupas permitem-nos expressar a nossa opinião sem abrir a boca. Instalamo-nos num café com as nossas calças de ganga favoritas e T-shirt estampada, e podemos fazer uma declaração política ou uma piada infantil. Podemos enviar um grito de guerra por vidas negras, magia negra ou feminismo. Um chapéu que desperte raiva ou solidariedade. Podemos defender o meio ambiente, um artista ou um músico favorito.

A moda é uma forma de comunicação que é tanto íntima, quanto pública. Sem nunca pronunciar uma palavra, estamos por trás da nossa própria mensagem, porque, de facto, estamos a usá-la. A roupa é uma forma eloquente de comunicação para os menos articulados. Também pode ser usada como uma máscara, quando alguém prefere fazer um espectáculo, em vez de arregaçar as mangas e seguir em frente.

As roupas são os restos do sucesso financeiro que usamos. Todo esse trabalho duro e sacrifício é explicado por um fato Tom Ford, uma mala Chanel ou um relógio Hublot. Sim, as roupas de luxo podem ter uma aparência única. Atraem os consumidores a pagar um preço exorbitante para possuir produtos de que não precisam; marcas chiques podem ser um reflexo da insegurança em letras grandes. Mas estas compras também contam uma história de esforço e conquista. Embora seja bom estar orgulhoso, em particular, as roupas dão às pessoas a oportunidade de se gabarem apenas ao entrarem numa sala e, às vezes, um pequeno aplauso da multidão é exactamente aquilo de que uma pessoa precisa.

Sem estes momentos de moda, perdemos a capacidade de nos ligarmos facilmente, de dizer algo — mesmo quando podemos ter muito medo de realmente fazer alguma coisa. Deixamos de ter uma oportunidade fácil para nos celebrarmos a nós mesmos publicamente ou simplesmente desfrutar do prazer de sentir que estamos a fazer a nossa parte para animar a paisagem visual. O prazer de usar um vestido ou um par de sapatos novos não é apenas para nossa satisfação pessoal. É levá-los para inspecção pública, para que se possam tornar outro detalhe da história, aquela que está em constante evolução e expansão.

Quando nos perguntamos “O que devo vestir hoje?”, estamos a fazer um conjunto muito maior de perguntas. “Quem sou eu?” “O que estou à espera para este dia?” “Como vejo a minha vida a avançar?”

Quando não conseguimos encontrar uma razão para dar atenção às nossas roupas — mesmo que apenas por um breve momento, ficamos em silêncio. E a nossa história, em todas as suas nuances, grandeza e humanidade, não se conta. Assim, quando nos isolamos em casa, as nossas roupas podem ser a nossa conversa animada, um monólogo apaixonado. À medida que corremos pela rua, obedientes ao nosso distanciamento social, as nossas roupas tornam-se ondas reluzentes, lembretes de que em algum momento voltaremos a conversar uns com os outros.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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