Cientistas portugueses já estudam como o novo coronavírus entra nas nossas células

Como é que o SARS-Cov-2 consegue penetrar no nosso corpo? Investigadores em Portugal estão a responder a esta questão para que possam contribuir para futuras terapias.

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O vírus SARS-Cov-2 (a laranja) isolado de um doente nos Estados Unidos NIAID/Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos

Pensemos no vírus SARS-Cov-2 como um ladrão que arromba a porta para entrar dentro das nossas células e nos assaltar. Para isso, usa um pé-de-cabra que tem à sua superfície chamado “proteína da espícula”. Depois de ter forçado a entrada, o vírus vai então multiplicar-se e prosseguir assim a infecção. Mas como é que o SARS-CoV-2 usa esse pé-de-cabra para nos assaltar? É isto que cientistas em Portugal já estão a investigar. Afinal, esta proteína pode ser um potencial alvo terapêutico.

Antes de mais, façamos as apresentações: o coronavírus SARS-CoV-2 tem uns picos à superfície designados “proteína da espícula” (ou spike). Essa proteína é essencial para o vírus penetrar nas células humanas e nos infectar. Como é que isso acontece? Tal como as nossas células, o vírus tem uma membrana e a proteína da espícula está por fora dessa membrana.

A proteína acaba por encontrar um contacto com as nossas células e muda de forma. Ao ficar mais esticada, vai expor uma região que conseguirá enfiar-se dentro da membrana das células. Depois, há uma série de forças em acção que vão fazer com que a nossa membrana e a do vírus se fundam, fazendo com que exista uma agregação dessas duas membranas e se forme um poro entre elas. Há assim um canal que permite que o material genético do vírus se insira dentro das células humanas.

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Proteína da espícula do novo coronavírus SARS-Cov-2 DR

Por agora, sabemos (de forma ainda preliminar) como é a estrutura original desta proteína. Numa edição da revista científica Science deste mês, revelou-se que é bastante semelhante à mesma proteína do vírus SARS-Cov, que causou uma epidemia em 2002 e 2003. Ao usar-se uma técnica de a microscopia electrónica, também se viram algumas diferenças: “A proteína precisa de ser cortada para ser activada e mudar de forma e parece que o SARS-CoV-2 tem uma zona de corte que o SARS-CoV não tem e isso pode permitir-lhe infectar mais células diferentes. Mas isso ainda é preliminar”, explica Diana Lousa, cientista do Instituto de Tecnologia Química e Biológica da Universidade Nova de Lisboa, em Oeiras.

Há cerca de sete anos que Diana Lousa tem vindo a estudar proteínas semelhantes à proteína da espícula do SARS-CoV-2 noutros vírus, como o da gripe e o da dengue. O objectivo do projecto que lidera é perceber como essas proteínas conseguem mudar de forma quando a infecção acontece, como a região que entra na nossa membrana o consegue fazer ou como as duas membranas se fundem. Tudo isto poderá dar pistas sobre que regiões da proteína poderão ser bloqueadas através de vacinas ou de outros medicamentos. 

No início deste ano, quando se soube que um novo coronavírus conseguia infectar humanos e se percebeu a sua importância, Diana Lousa pensou logo em transpor o seu estudo para o SARS-CoV-2. “Como o meu objectivo é comparar diferentes vírus e os seus mecanismos de entrada, quando apareceu este novo vírus achei que era uma oportunidade interessante, até pelo impacto que esta investigação poderia ter”, esclarece Diana Lousa. 

Através de simulações computacionais, começou por estudar dinâmica da proteína do SARS-CoV (que tem cerca de 80% de semelhanças com a do novo vírus) – e ainda continua a fazê-lo. À medida que vão saindo estudos com a estrutura do SARS-CoV-2, vai-se já usando esses trabalhos nestas simulações. O que se vê então nas simulações? Como a mudança de forma da proteína e a sua interacção com a membrana das nossas células não conseguem ser observadas por nenhum método experimental, nas simulações já se consegue ver a proteína em acção.

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A investigadora Diana Lousa DR

“É um bocadinho como um jogo de realidade virtual em que simulamos a proteína a mexer-se e a sua interacção com as membranas”, compara a cientista. “O nosso objectivo é perceber como acontece a mudança de forma ou quais são as zonas da proteína que são mais importantes nesta mudança. Assim, podemos desenvolver ou testar medicamentos já existentes para bloquear a proteína.”

À procura de inibidores do vírus  

Mas Diana Lousa não está sozinha. Há já várias equipas no mundo a estudarem esta proteína. E, neste momento, a cientista está a iniciar colaborações com virologistas e farmacêuticos na Finlândia para concorrer a financiamento focado no desenvolvimento de diagnóstico e terapias baseados em anticorpos.

Em Portugal, Diana Lousa tem uma colaboração com a equipa de Miguel Rocha, da Universidade do Minho, que usará métodos de inteligência artificial para tentar prever regiões destas proteínas que possam ser importantes na interacção com a membrana das células humanas. Já a equipa de Miguel Castanho, cientista do Instituto de Medicina Molecular (em Lisboa), complementará todo este trabalho com experiências laboratoriais para observar como é que a proteína da espícula perturba a nossa membrana e facilita assim a entrada do vírus. Além disso, procurará uma molécula que se ligue à proteína da espícula e iniba a ligação ao receptor das células humanas.

Há bastante tempo que o grupo de Miguel Castanho investiga os inibidores de fusão de vírus, isto é, moléculas que impedem os vírus de entrar nas células, sobretudo do VIH. Mas, há uns anos, quando ocorreu a epidemia do SARS-CoV, trabalhou com um grupo de investigadores da China que tinha algumas moléculas que podiam impedir a entrada do SARS nas células humanas.

Apesar de o SARS-CoV e o VIH serem vírus diferentes e causarem doenças bastante diferentes, há detalhes nas moléculas desses vírus que lhes possibilitam entrar dentro das nossas células que são “relativamente semelhantes”, refere Miguel Castanho. Como tal, investigou-se se as moléculas que impediam o VIH de entrar dentro das células também resultariam com o SARS-CoV. Resultado: as moléculas que estavam a ser desenvolvidas e resultavam no VIH tinham alguma capacidade de ligação às do SARS-CoV. “Havia uma ligação e algum efeito, mas não era suficientemente forte para que as moléculas anti-VIH pudessem ser usadas contra o SARS”, lembra o cientista.

Como já tem experiência a investigar moléculas que impedem os vírus de entrar nas células, esta equipa vai agora fazer o mesmo para o SARS-CoV-2. O grande objectivo é conseguir uma molécula que se ligue à proteína da espícula. “Com essa molécula agarrada a essa proteína do vírus, ele já não consegue fazer a ligação à superfície das células e assim conseguimos impedir que entre nas células”, refere Miguel Castanho. 

Uma vacina para todos os coronavírus?

Este trabalho ainda está no início, mas o investigador ressalva que não quer dizer que se esteja a começar do zero, porque já existe a experiência da investigação dos outros vírus. “Alguns resultados podem aparecer rapidamente, mas aquilo que as pessoas esperam e aquilo que é preciso como resultado muito prático vai demorar tempo”, destaca, acrescentando que os primeiros resultados podem demorar um ou dois anos a surgir, o que também depende da continuidade e financiamento do estudo.

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Miguel Castanho DR

Correndo tudo bem, o grande objectivo deste trabalho é contribuir para um novo medicamento. Mas haverá várias etapas: na primeira, tem de se conhecer a estrutura das moléculas; na segunda, desenvolver novas moléculas que possa interferir nas estruturas dos vírus; e, na última, uma molécula que possa já ser um potencial medicamento. “Aí essa nova molécula tem de ser transferida para a indústria, que fará os últimos desenvolvimentos.”

E, já agora, será possível virmos a ter uma vacina ou outro medicamento para todos os coronavírus? “Os coronavírus são muito diversos e não sei se será possível termos uma vacina contra todos os coronavírus, mas será possível termos uma terapia mais universal”, responde Diana Lousa. Para isso, teremos de descobrir os pontos em comum nos diferentes coronavírus. “Se daqui a dez anos surgir um novo coronavírus ou se este sofrer muitas mutações, o facto de termos muito conhecimento sobre estas proteínas e conhecermos zonas que são iguais em todos os vírus poderá permitir-nos ter uma terapia mais universal.” Para isso, será preciso tempo e investimento no conhecimento científico.    

Por agora, neste momento de emergência, tanto Diana Lousa como Miguel Castanho prosseguem os seus trabalhos em casa.

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