Os sinais vermelhos

Testemunho de Mariana Coimbra Piçarra, juíza. “A minha casa tornou-se a sala de audiências e o gabinete do meu tribunal”

É o oitavo dia [no momento em que escrevo] desta reclusão forçada e altruísta e começo o dia a ler um texto do El País intitulado “Éramos felizes e não sabíamos”. É verdade, há uns dias, nós éramos, aparentemente, felizes e tínhamos o nosso modo de vida por adquirido. Estes dias de clausura social pesam-me nos ombros como uma década. Já racionei o tempo de antena para as notícias sobre a progressão da pandemia porque não posso, não podemos sucumbir ao medo do que está para vir e, muito menos, ao desespero pela incerteza que este mundo quase de ficção convoca.

A minha vida de juíza mudou, a minha casa tornou-se a sala de audiências e o gabinete do meu tribunal, é o espaço onde continuo a tomar decisões, circunscritas aos processos urgentes. Ligo-me ao sistema informático, que não está preparado para a procura de tantos utilizadores, e desdobro-me em contactos telefónicos com funcionários judiciais, que permanecem estoicamente a fazer com que a máquina não entorpeça, e com colegas sobre interpretações dos diplomas legais que executam o estado de emergência. A cabeça de um jurista é pródiga em múltiplas interpretações da lei, mesmo em situações de calamidade, está no nosso ADN.

Mas a verdade é que o mundo não pode parar, o Estado de direito não ficou suspenso pela declaração de estado de emergência, a democracia tal qual a concebemos mantém-se viva e há que acautelar os prazos máximos das medidas de coação de quem aguarda um desfecho de um processo, privado da sua liberdade.

Ontem, foi a leitura de acórdão, num processo de arguido preso preventivamente, que levou à sua imediata libertação, em consequência da sua absolvição. O arguido e os guardas prisionais foram dispensados de comparecer e, assim, se garantiu a presença do menor número de pessoas. De seguida, foram emitidos e assinados eletronicamente os mandados de libertação que vieram a ser enviados a tempo para que saísse em liberdade.

Hoje [no dia em que escrevo], a decisão que tenho em mãos é mais complexa e tem que ver com a realização, na próxima semana, de um julgamento também em processo urgente com um número considerável de testemunhas. Após um rodopio de telefonemas, de medições à sala de audiências, de sugestões informáticas e de ponderação do material para garantir as recomendações das autoridades de saúde, decidi, em consenso com os meus colegas, manter o julgamento.

O arguido acompanhará a produção de prova por videoconferência, no estabelecimento prisional, as testemunhas serão escalonadas e permanecerão em vários espaços do tribunal, que serão desinfetados, até serem ouvidas, e quem pretender pode depor por Skype. É uma ponderação e conjugação de direitos complexa, exige-nos alguma improvisação e criatividade, mas nunca senti um esforço coletivo, como agora, para que as coisas não paralisem, porque os tribunais não podem paralisar numa época de exceção.

A minha janela passou a ser o meu mundo e, com sol, a minha rua deserta parece-me mais bonita, simplesmente porque passei a vê-la com outros olhos e com outra urgência. Vejo um carro que não respeita o sinal vermelho, certamente porque quem o conduz tinha a “estranha” certeza de que não circulavam outros veículos no cruzamento. E, neste recolhimento de afetos e contato a que todos estamos obrigados, penso que os tempos podem ser duros e incertos, que vão trazer sofrimento, mas nunca foi tão importante a salvaguarda das regras e dos direitos adquiridos na nossa sociedade.

Os sinais vermelhos têm de ser sempre cumpridos. Os direitos fundamentais também.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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